25 de nov. de 2011

O recorte. collage de Rufino Becker. 2011

17 de set. de 2011


A COLLAGE COMO TRAJETÓRIA AMOROSA
Fernando Freitas Fuão
Editora da UFRGS. 2011 (pedidos diretamente para editora)
http://www.livraria.ufrgs.br/ConsProduto.aspx?inddestaque=1
R$ 25, 00

Dados Técnicos
Projeto Gráfico e capa:Adriana Tazima
Editoração eletrônica: Rafael Marczal de Lima
Imagem da capa: Olhos de de Lempiska. 1989.Collage . Fernando Fuão
118 paginas.  14 paginas a cores (ilustrações collage)







COLLAGE: UM PRÓLOGO

Floriano Martins

Em 1972, dizia Roland Barthes que “tudo é linguagem, ou mais precisamente a linguagem está em todo o lado”.Três décadas depois, a linguagem nos sufoca, ou mais precisamente a linguagem ocupou tanto a nossa vida que já não sabemos o que somos, considerando no mínimo vago o axioma de que o homem é um ser de linguagem. Em parte, este desconforto ou sufocação vem de uma sutileza: a maneira como a expressão resignou-se a ser representação, como a linguagem foi devorada pela imagem, movendo-se o eixo do discurso. Barthes, já então, se referia a “um espaço novo em que o sujeito da escrita e o da leitura não têm exatamente o mesmo lugar”, e o dilema não é este, ou seja, não se trata de substituição do espaço de um pelo outro. Se a configuração desse duplo lugar constituía “todo o trabalho da modernidade”, hoje, temos que reconciliá-los de maneira que possam coabitar um mesmo ambiente. Isto, naturalmente, requer um outro entendimento acerca do significado de coisas e seres, a começar pela recuperação de um sentido distinto entre tais referentes: coisas e seres. Há um momento em que o ser abandona essa condição de princípio, deixando-se converter em peça manipulável.
Por outro lado, a coisa parece ter adquirido um atributo autônomo de manifestação. O homem já não decide nada por si, ao passo que uma cadeira transmuta-se em mala ou carro a depender de seu estado de humor. Exageramos no simbólico; onde uma coisa substitui a outra? Pelo contrário, acabamos estilhaçando toda perspectiva de analogia. Mas sim, por um tipo a ser considerado de retórica hiperbólica, um traço característico de nosso tempo. Trata-se de um desarranjo com controle de níveis de desconforto, ou seja, uma perturbação fiscalizada, sob domínio. Não quero dizer, aqui, que os signos tornaram-se vazios por atividade, o que pareceria ir de encontro à dinâmica da própria existência humana. Observemos que, em aparentes ausências de propósitos é onde mais vemos um sistema instalar-se com sutil virtuosidade. Há toda uma ficção dos estados paranóicos que atua neste sentido, gerando uma cumplicidade, em muitos casos, passiva. Isso implica em que os signos, hoje, se converteram em máscaras, o que nos traz de volta à dissensão entre expressão e representação.
Façamos as perguntas diretas, que nos obrigam a uma clareza na resposta: o que exprimimos? O que representamos? E, eis aí a hipóstase brilhante: ou exprimimos ou representamos. Com isto se apaga toda a perspectiva mágica da existência. E todo o conhecimento resultou em nada. Pior: toda a aventura humana – refiro-me à aventura do ser, o que naturalmente inclui o mito – cai por terra. Para isto estivemos? Para, ao final do dia, dizermos que tudo aquilo que aprendemos amanhã de nada servirá, porque não o assumiremos? A representação, em si, é uma expressão. Não se trata de uma veleidade de classe ou de uma campanha publicitária. Representamos aquilo que somos – o que inclui as artimanhas do desejo. Da mesma forma, a expressão, em si, surge como uma representação. Em uma época devotada à ascensão, do que mais carecemos é de assunção. E este, em definitivo, não é mais um jogo de palavras.
Há uma forma definitiva para o ser? É como indagar: há uma forma definitiva para a criação? O homem se exaure quando se esgota a criação. Mas há, isto sim, um atropelo de imagens, uma retórica de imagens, que, por vezes, embota nossa expectativa em torno do homem e da criação. O Surrealismo soube, no momento certo, alertar para o fato de que sem imaginário o homem não seria nada. Em grande parte, suas idéias sobre símbolo e ilusão foram devoradas pela indústria da propaganda; foram desacreditadas, não por analogia falaciosa com suas demandas psicóticas, mas, antes pelo artifício do fantástico, de um real acima de todas as possibilidades, de uma quimera galopante pelas pradarias do patético. Entretanto, quando há um corte, um simples sangramento inesperado, resultante de um golpe de faca em um dedo, como reagimos? Como sublimar ou aniquilar o significado da dor, da dor em si? Evidente que, o ato, não pára no ato, que o desejo não se restringe em si mesmo. Tudo o que percebemos, por mais estático, é pura dinâmica. Nada se dá isoladamente.
O que se passa é que o alerta do Surrealismo, para muitos, tem 80 anos de idade. E sua leitura se confunde com a de um manual qualquer. Leitura é interpretação e interpretação é vivência. De tal maneira que, reler o primeiro manifesto do Surrealismo, hoje, implica em atualizá-lo, no sentido de perceber que a expressão segue cobrando duramente os abrandamentos da representação. Evidente que, extrapolar vícios de espaço e tempo cabe a toda leitura atenta relativa a cada época. Um dos aspectos mais importantes ressaltados pelo Surrealismo vem do fato de que a realidade extrapola o âmbito de sua montagem. Neste sentido, a collage é a expressão de recusa a um mundo indesejável: o da representação como retórica. A transfiguração defendida por seu criador, Max Ernst, deve ser mantida até hoje, o que implica no surgimento de umas figuras tanto impensáveis quanto indesejáveis. Há que identificar toda a carga retórica do Surrealismo e perceber que novas expressões validam as fontes e assumem uma responsabilidade outra. Deslocamento de imagem ou linguagem? Este livro aponta que um processo natural de desdobramento desses recursos tornou-se possível, definindo uma linguagem outra, uma leitura substanciosa, sobretudo, porque sabe somar, em meio a uma tradição afeita à subtração.
A rigor, este é o primeiro volume dedicado ao tema que se publica no Brasil. Antes dele, há uma referência essencial, Collage em Nova Superfície (1984), de Sérgio Lima, porém publicação de difícil acesso e com alguns lamentáveis problemas de montagem. Fernando Freitas Fuão começa a destacar-se como um estudioso sério do assunto e que certamente terá uma contribuição cada vez maior a nos dar em termos de reflexão acerca da collage entre nós. Pouco me estendo a este respeito pelo simples fato de que o próprio livro sabe de forma a mais instigante entrar na matéria, envolvendo o leitor e o apresentando um mundo verdadeiramente mágico e muito mais à sua mão do que se pudesse até então imaginar. Não é só a trajetória criativa da collage em si que se pode considerar como amorosa, mas também o trajeto traçado por Freitas Fuão em todo este livro encontra-se ambientado nesta mesma condição amorosa. E dentro de sua maneira apaixonada de abordar o tema, conclui um dos capítulos chamando a nossa atenção para algo capital: “O poeta será sempre aquele que não só abre as fendas e separa os corpos quando necessário, mas também o único que sabe tornar a começar, unir, colar, o que foi realmente separado”.
Ora, já no princípio deste A Collage como Trajetória Amorosa, ao referir-se a técnicas de representação, Freitas Fuão alerta que “um dos prejuízos da representação que se pretende realista é a fragmentação do mundo” - vale lembrar que, na biologia, por exemplo, a fragmentação está ligada à reprodução assexuada. Qual a relação entre o poeta e a linguagem em nosso tempo? A quebra de um sistema de conceitos ideológicos por que passou a segunda metade do século XX nos deixou a todos desorientados. Poderíamos aqui dizer que o mesmo poeta que soube, durante o período das vanguardas, abrir as fendas e separar os corpos, parece não estar sabendo, agora, “tornar a começar, unir, colar, o que foi realmente separado”. Há duas – quando menos – perspectivas a serem consideradas: o poeta não percebe o quanto que influiu para a fragmentação do mundo; o poeta não aceita sua nova responsabilidade. Talvez caiba aqui dizer, como o faz Freitas Fuão ao referir-se às relações entre representação e cola, que tudo não passa de truque, “uma sujeira que pretende que a coisa, depois de colada, seja inteira, quando, em realidade, não o é”. Mas onde aplicar a cola, onde aplicar a representação?
Este livro consegue estabelecer uma relação íntima impressionante entre a realidade e seu objeto de estudo. Não se trata apenas, como diz o autor, de orientar o leitor “na grande pluralidade de significados que a palavra collage adquiriu ao longo de sua descoberta”, mas também de nos fazer crer que temos todos papéis preponderantes no roteiro de nossa própria existência, onde aspectos como representação e fragmentação são mais fundamentais do que muitos imaginam, e onde a arte desempenha um papel dúbio tão-somente por força da condição vacilante do artista. O que fragmentamos, recortamos, encontramos, colamos? Há um capítulo destinado a cada um desses truques amorosos. O leitor que sabe acompanhar um texto como quem liga pontos entre múltiplas experiências – incluindo a sua e a do autor do livro -, decerto saberá compreender o quanto que a collage está presente em nossa vida. O mundo todo hoje não passa de um grande truque? Vamos ao livro.

COMENTARIOS
Fernando, foi uma boa surpresa receber os seus livros, conhecer sua obra de colagens que transverbera o cotidiano portoalegrense, funde o fantástico ao primitivo e resitua a civilizacão nos seus paradoxos.
Acresce uma sólida bibliografia, uma forma de pensar que dá sustentação à criatividade.Parabens!
Abraço ars
Affonso Romano de Sant'Annna

10 de jul. de 2011




Vozes do aquém do artista, escritor, poeta e filósofo Nelson d'Paula me chega como um chamado poético à reflexão existencial, uma mescla de filosofia e poesia surrealista se reúnem nos entre-espaços de suas páginas, na epidermica folha de papel, no texto delineado quase como tatuagem tipográfica, uma maquiagem reveladora, em algumas de suas páginas. Desde o 'Lamento dos pré fantasmas' - primeira comunicação- até a 'Lacraia tem alma' é todo um despejar-se sobre a condição humana e da eterna devoração. Pré fantasmas na própria condição de condenação a passagem dos sopros e furacões divinos, como Nelson d'Paula afirma em suas primeiras linhas, seres cambaleantes e condenados mesmos antes do nascimento, é o que somos todos. Vozes do aquém, vozes dos espíritos que nos sopram, no instante, palavras ao grande reenvio, a origem, a unidade, a essa eterna unidade que nos debatemos e nos rebelamos como poeira. Vozes do aquém transparece ainda reminiscências do surrealimo entre mesclado com a mesma filosofia contida em Collage: um testemmunho fenomenológico, uma magnífica reflexão sobre a collage e criação.
Vozes do aquém é um chamado ás leis sociais da vida, a convivência pois, o além é comunista, com-Uno-mista. "Todas as almas são iguais, é falsa a idéia de uma uma hierarquia celestial, os lugares das nuvens não são reservados, as forças divinas não foram feitas para lotear pedaços de céu". O comum não é a capacidade de repartir a produção, mas capacidade de doação. Nelson d'Paula, compartilha com Leibnitz a visão das monadas, "o infinito é feito de infinitos pontos finitos, cacos muito pequenos montam os arco-íris, que são pontes para o alto".

Vozes do aquém , é uma conversa, uma comunicação eletríficante e dignificante que meche com as orelhas, abala o ouvido, pois traduz o eterno debater-se do homem, o criador e criatura, o drama de seus pedidos, a recusa à um destino fixo de cartas marcadas. A cada virada de página, ao esticar os dedos o leitor depara-se quase como uma oração, uma sentença incondicional da existência. "Creio no humano, pois é a casa da Alma, muito além do mero arcabouço, mas elemento constituinte e integrador". Vozes do aquém é collage de entendimento e acontecimento.  O uno é a cola total, a grande collage, a colisão, o grande choque das infinitas diferenças, das infinitas particularidades, é o lugar sem lugar, a cola sem cola que ata tudo. Re-une. O colar de infinitas contas que se retorce. Mas não basta o humano, é justamente o sentido da doação, do amor que junta. Todas esses pensares que também compartilho com Nelson nessa escuta, mostram a responsabilidade da existência.


fernando fuão. 




9 de abr. de 2011

AS BORDAS DO TEMPO
Fernando Fuão
Esse ensaio sobre Antonio Negri e a collage surge de uma experiência pessoal ao ler Kairòs, Alma Vênus, Multitudo, numa praia desolada#. À medida que lia, percebia o quanto o conceito de collage, como havia apresentado em “A collage como trajetória amorosa” e “Arquitectura como Collage”#, estava presente no pensamento de Negri em sua Alma Vênus.
Assim, esse ensaio lança-se além das reflexões sobre as nove lições de Negri, buscando atingir aquilo que eu ainda não havia tratado com a devida intensidade na collage: os contornos, as bordas das figuras, as bordas da matéria, as bordas do ser, as bordas das multidões...
Collage, aqui, não é uma reflexão sobre o procedimento ou a técnica, mas sim um questionamento sobre os limites da representação, sobre a organização dos corpos no espaço, na vida. Sobre essas imprecisões, por assim dizer, a collage se delineia como os novos contornos do ser.
Portanto, em meio às “nove lições ensinadas a mim mesmo” de Negri, misturam-se também reflexões, muito pessoais, de uma experiência em torno aos limites da natureza, das relações da matéria presentes na estreita e extensa faixa da beira do mar do Rio Grande do Sul, Brasil. É o encontro dessas forças da vida, como devaneios poéticos, que vem iluminar as questões que se seguem.
A argumentação desse texto está entrelaçada – como um estranho casamento – pelas passagens de Negri de “Kairòs, Alma Vênus, Multitudo” e as passagens de “A Collage como trajetória amorosa”; ambas costuram-se pelos contornos das figuras, pelos encontros, pela pobreza e excessos, pelo acaso e, sobretudo, pelo amor.
hermenegildo-oto. collage . fernando fuão 2011

23 de fev. de 2011
































Orelhão Collage. Rio de janeiro. Foto: Achylles Costa Neto

14 de fev. de 2011

A collage surrealista no Brasil
Fernando Freitas Fuão

The research project entitled "The Surrealist collage in Brazil: visual arts" exposes and rescues the artists committed to the collage from the perspective of Surrealism. To enclose it into the realm of surrealism was purposely to restrict the broad repertoire that is commonly known as glue. The collage differs from the glue: The collage seeking a change of direction of things, and the world, while the word glue expresses only the worldly sense of paste, and add or things. This study shows the activity of collage as one of the languages of surrealism, expression par excellence of the unconscious, manifested through the displacements, substitutions, chance encounters, hasard. This paper presents, sequentially, Brazilian artists, with approaches to surrealism, who worked experimentally with collage, from the first half of the twentieth century until today, among them: Jorge de Lima, Teresa D'Amico, and poets and artists linked to the Surrealist Group of São Paulo, formed from years 60-90 by Sergio Lima, Floriano Martins, Nelson de Paula and others, and finally the artist João Manta in Pelotas, Rio Grande do Sul
Keywords: Collage, Jorge de Lima, Tereza d’Amico, Floriano Martins, João Manta

1. Introdução. A collage no Brasil
A collage no Brasil foi recluida a uma espécie de marginalidade oficializada, donde muitos praticam, mas poucos se atrevem a estudar ou comentar o fenômeno. A collage esteve presente, ainda que de forma implícita em todas as manifestações artísticas da modernidade no Brasil, entretanto a maioria dos livros se esquivou oportunamente do tema, dando preferência à pintura, literatura escultura, arquitetura. Quem lê, quem vê as historias da arte moderna brasileira acreditará que nunca se fez collage.
Este artigo ao delimitar a collage ao campo do surrealismo restringe propositadamente o amplo repertório que se conhece vulgarmente como colagem. Diferencia-se aqui, portanto, a collage da colagem. A collage busca uma mudança de sentido das coisas e do mundo; expressão por antonomásia do inconsciente, trabalha através de deslocamentos, substituições, encontros fortuitos, acaso; enquanto a palavra colagem expressa apenas o sentido mundano de colar e/ou juntar coisas.
Apresenta-se, seqüencialmente, alguns artistas brasileiros, selecionados da pesquisa A collage no Brasil artes plásticas e arquitetura (CNPq-UFRGS) comprometidos e ou com aproximações ao surrealismo, entre eles: Jorge de Lima, Tereza D'Amico, Sergio Lima, Floriano Martins, Nelson de Paula e João Manta.

2. Jorge de Lima
Jorge de Lima (1893-1953), um dos precursores da collage no Brasil, percorreu a poesia, a pintura e a collage como formas de expressão, passando continuamente de uma linguagem a outra. Nesta transfusão de linguagens a collage se apresentou como ponte na articulação de pensamentos que ia de um estado a outro.
 A pintura em pânico (1943) é provavelmente a primeira fotonovela/collage, realizada segundo os moldes de La Femme sans tête (1929) e de Une Semaine de bonté (1934) de Max Ernst, onde a narrativa clássica dá lugar a uma narratividade descontinua através de golpes de corte, de deslocamento de significados similar ao mundo dos sonhos. Jorge de Lima adota muito dessas estratégias, como também por ex: a substituição de cabeças de pessoas por animais, a utilização da frottage sobre tecidos e ou rendas. Sobretudo pode-se observar nas collages de Jorge de Lima uma constante dramaticidade que é retratada nas figuras femininas através das mãos, cabeças e cabelos.
A redescoberta de A pintura em pânico só foi possível pelos estudos de José Niraldo de Farias, Sergio Lima e Ana Paulino. Tudo em Jorge de Lima é transfiguração e recriação, como aponta Farias; mesmo partindo daquilo que já existe, o poeta criou novos espaços, novas possibilidades, abrindo perspectivas inusitadas para a aventura poética: “O fato de um médico ser poeta, ter se dedicado também a pintura e ter publicado um livro de fotomontagens intitulado A pintura em pânico nos demonstram um grande interesse do artista pela collage”
Sergio Lima, um profundo estudioso do surrealismo no Brasil, observou, por outro lado, a falta de divulgação das collages de Jorge de Lima, apontando os desvios intencionais terminológicos dados às suas collages. Relata que houve, no Brasil, vínculos explícitos com o surrealismo e seu movimento, desde inícios dos anos vinte; o livro “A pintura em pânico sofreu uma redução intencional promovida por Mario de Andrade, dizendo desde fins dos anos 30 que as ‘collages’ de Jorge de Lima eram meras fotomontagens, e que collage não era uma palavra brasileira.”
Ana Maria Paulino, em seu livro Jorge de Lima, poesia e pintura#, apresentou as relações entre a pintura e a poesia; nele havia só três collages. O livro foi dividido em três partes: o poeta, o pintor, e o poeta-pintor. Observa-se assim, de entrada, certa exclusão da collage, a qual não temeria de repetir que seria o elemento aglutinante entre poesia e a pintura de Jorge de Lima. Paulino escolhe três collages, que denomina também fotomontagens, entre as dezenas que compõem o A pintura em pânico; a escolha foi oportuna ao discurso de Paulino: são collages onde aparece a presença da mulher e do feminino, algumas sem cabeça, as quais ela criticaria desde a óptica do feminismo.


Jorge de Lima. Collage . In: Idem. A pintura em pânico. 1943. Fonte da ilustração: http://www.apinturaempanico.com/exposicao.html


Jorge de Lima. Collage. In: Idem. A pintura em pânico. 1943. Fonte da ilustração: http://www.apinturaempanico.com/exposicao.html


3. Tereza d’Amico

Tereza D'Amico (1914-1951) também pode ser reconhecida como uma das precursoras da collage surrealista no Brasil. Descobrir essa arte da collage em Tereza D'Amico significa reencontrar um pouco a magia do folclore brasileiro em suas alegorias, mitos e ritos.
Tereza descobriu o valor dos materiais extras pictóricos como: sementes, areia, conchas, gravetos, cerâmica, penas, ossos para materializar suas collages através de estratégias compositivas como: mosaicos, acumulações e substituições.
Suas collages referenciam essencialmente ao sagrado; a collage Orixá (1961), por exemplo, é a figura humanizada de um deus transfigurado em 'corpocollage'. O inusitado está na presença de elementos da natureza como um esqueleto de peixe, sementes e borboletas. D’Amico, propõe um jogo surreal entre esses elementos: no lugar do nariz o esqueleto de peixe, no lugar da boca uma borboleta; a correlação analógica entre a espinha de peixe e o nariz não se dá só através da forma, mas sim na relação de flexibilidade e movimento que ambos similarmente apresentam. A partir deste jogo de significado surgem novas interpretações para o que é visto, lembrando a relação entre o movimento dos lábios e o bater das asas. Para representar as mãos, D’Amico utiliza-se de duas sementes de mamona, fazendo referência àquilo que se agarra, gruda e pega. Enfim, Orixá sintetiza um processo inusitado de substituições de partes, levando o sentido a transcender a mera materialidade. Orixá, nas mãos de D'Amico é o deus interrogante do corpo.
Collages como Sendas, O semeador (1965), Paisagem encantada (1963), Mapa (1962) são collages cartográficas, uma cartografia surreal. Na collage Sendas, podemos ler a imagem tanto como um mapa onde existe a presença de caminhos, montanhas, rios, ou ver uma figura humana cujos membros como pernas e braços confundem-se com um gigantesco falo. A inobservância da importância de D'Amico na cultura brasileira foi explicada por Geraldo Ferraz: “a falta de uma teoria ocidental da arte mágica tem talvez constituído um obstáculo para a compreensão de muitos artistas contemporâneos.”


Tereza d’Amico. Orixá. Fonte da ilustração: http://mundocollage.blogspot.com/



Tereza d’Amico. Sendas. Fonte da ilustração: http://www.revista.agulha.nom.br/ag26amico.htm

4. Sergio Lima
Sergio Lima,  um dos principais estudiosos do surrealismo no Brasil, poeta, escritor, começa a trabalhar com collage em 1957; mais precisamente, entre agosto e dezembro produziu As aventuras do máscara negra, uma fotonovela baseada nas collages de Max Ernst. Nesta época Lima já conhecia algumas imagens das novelas-collages de Ernst, mas não o livro em sua totalidade.
Tal como uma fotonovela, As aventuras do máscara negra está composta a partir de textos e collages. O texto algumas vezes é proveniente de escrituras automáticas, poesias, que ora funcionam como páginas-textos, ora como legendas em apoio às imagens. Está construída a golpes de corte, onde a imagem seguinte parece não ter correlação com a anterior. Similar à narratividade dos sonhos, o personagem principal da ação, muitas vezes, assume outras formas, serve-se de outras pessoas para representar-se, assim como os ambientes, cenários mudam bruscamente, revelando que o que importa é o conteúdo a ser transmitido e não a forma, a aparência.
Algumas frases colocadas embaixo das collages são anti-legendas não correspondem ao conteúdo, servem para ampliar o significado e transfigurar as figuras na collage. Essa estratégia, utilizada em As aventuras do máscara negra, ele aplicará em quase todas as suas collages posteriores.
O conteúdo da história tal como o nome indica é aventura e ação. O personagem está baseado nos seriados de cinema da época: Jim da Selva, Perigos de Paulina, Fantasma, Cavaleiro Prateado. Trata-se de uma brilhante trama construída mediante constante reenvios literários ao romance gótico, noir, e histórias em quadrinhos.
O máscara negra, personagem central, em algumas, apresenta-se como um personagem extraído de bang bang, seu rosto nunca se deixa revelar, tal como Fantomas. A primeira collage do livro “O amanhecer do máscara negra”, mostra a cabeça encapuzada sem corpo, flutuando no ar sobre o amanhecer na floresta
As aventuras do máscara negra é lúdica e irreverente, como a essência da collage mesmo, em contraposição ao caráter plástico das collages-quadro realizadas por ele, posteriormente. São cinematográficas, narrativas e cômicas, são tratadas de uma maneira distinta de suas collages atuais, onde há poucas figuras, duas ou três, e estão justapostas lado a lado. Em As aventuras do máscara negra, há bastante figuras recortadas e estão sobrepostas, interpenetradas, enxertadas, inseridas sobre uma figura-fundo, para o desenrolar da ação.
De certa forma, Lima, nessa época, já anunciava sua predileção pelo tema do corpo feminino; esta temática desde então se acentuará e será uma constante em todo seu trabalho, nas collages, desenhos e poesia, constituindo sua teorização do corpo como conhecimento.
Para construir suas aventuras Lima utilizou-se de recortes de revistas da época, como a revista Life e Revista cinema. As figuras recortadas foram as mais variadas, anúncios de propaganda do Toddy, paisagens de natureza; e até figuras femininas tiradas de um baralho pornô.
Todas as suas collages são surrealista: mulheres aladas, bocas que sobrevoam quartos, mulheres metade máquina, metade humana, imagens oníricas e românticas, máquinas fotográficas gigantescas em meio a operários. Sergio Lima trabalha suas collages através da analogia entre as figuras, operando basicamente com duas ou três imagens, estando estas ora distanciadas entre si, ora justapostas, ora sobrepostas, levando a relações conceituais onde brota a luz da criação.


Lima Sergio. As aventuras do máscara negra. 1956-1957. Fonte da ilustração: Lima, Sergio. Collage em nova superfície. São Paulo: Ed. Parma, 1984. p.113



Sergio Lima. La lupa. 1983. Collage. Fonte da ilustração: Escrituras surrealistas II, 1996. Grupo Surrealista de São Paulo. USP. SMCSP.

5. Floriano Martins
Outro expoente da collage é Floriano Martins, nascido em 1957, na cidade de Fortaleza, poeta, tradutor, ensaísta, e também um profundo estudioso do surrealismo na America Latina.
Uma de suas primeiras collages, que aqui destaco, intitula-se Anotações para um livro de Ângela, uma ilustração para o próprio livro de mesmo título. Nessa collage a presença do fogo reflete um pouco de sua relação com a própria atividade do fazer poético.
A figura feminina que aparece na collage esta justaposta a um quadro de fundo onde aparece uma escada de madeira, com um cão mais ao fundo. Alguns elementos conectam as duas imagens, uma delas é a presença da madeira que perpassa a escada, a moldura do quadro, a moldura da janela e da madeira que queima. A idéia de calor, ou fogo, é realçada pelo vermelho utilizado no fundo como uma espécie de espaço neural, o pano de fundo do quadro onde marca a presença feminina é azul e correlaciona-se com o azul pálido do reflexo do céu nas vidraças da janela.
Para Floriano Martins não existe separação entre collage e poesia:
“Não vejo razão para que se estabeleça uma dissociação entre o meu poema e a minha collage. Tudo o que tocamos é memória, somos memória se fazendo a cada instante, portanto, tudo o que cortamos também é memória, trata-se de uma perspectiva filosófica e não meramente técnica. A tesoura age exatamente neste tecido vital que é o tempo. Criamos desde o silêncio, desde o invisível. Toda criação é diálogo, a fundação da diálogo entre ser e mundo. Não vejo razão para a collage ser dissociada do poema, do teatro, do cinema.”


Floriano Martins. Anotações para um livro de Ângela. Collage.s/d. Fonte da ilustração. Foto do autor, Floriano Martins


6. Nelson de Paula
Nelson de Paula, além de trabalhar com collage, é o autor de um emblemático livro: Collage, um testemunho fenomenológico#. Mesmo sendo integrante do Grupo Surrealista de São Paulo, suas collages escapam à estética do resto do Grupo. As collages de Nelson de Paula nos anos 70-80 não excluem a temática do corpo feminino como representação e conhecimento, mas irão situar-se na interrogação da própria representação e profundidade, bem antes da desconstrução proposta por Derrida.
Nelson nos faz ver que as superfícies são como peles. Para ele e Sergio Lima a imagem é tecido, fotografias são peles, e o grafismo que trabalha em cima dessas imagens se constitui quase como uma tatuagem. Ele ataca a superfície, a fotografia, o papel da revista, a pele para fazer a 'in-scrição', a escrita em profundidade. Nelson explora este grafismo como se fosse algo análogo também ao grafismo das veias da madeira, que gravam o registro de uma vivência. São collages que se apóiam na reprodução de fotocopias p&b, típicas da década de 70, e estão publicados no livro: A hóstia de Ísis um kyrie vaudeville, collages, enfatizam a superficialidade do papel-pele, dos suportes. Para expressar essa idéia, ele apaga a possibilidade de leitura de certa profundidade mediante a utilização de manchas escuras, manchas claras, ou simplesmente texturas feitas com canetas nanquim. Achata, chapa.
Ao ler seus escritos compreende-se a relação direta com sua obra plástica. Para Nelson de Paula, “a superfície da collage não se caracteriza por ter aplicações coladas, mas sim pelo deslocamento do próprio conceito de superfície.”


Nelson de Paula. Diana caçadora. (1977). Collage. Fonte da ilustração: PAULA, Nelson de. A hóstia de Ísis, um Kyrie Vaudeville, collages. São Paulo: Edição a cargo do autor. s/d.


7. João Manta
O trabalho de João Manta (1954) está mais próximo do universo pop, do que do surrealismo. As collages de Manta possuem três componentes que permeiam sua obra: a influência do surrealismo de Max Ernst; o caráter pop das collages de Hamilton, das repetições de Warhol; o abstracionismo e a composição de recortes de Kurt Schwitters. Cada um desses componentes se apresentará em determinados momentos de sua trajetória artística.
Sua primeira exposição de collages, em Pelotas, em 1979, enche as paredes de cores e imagens da galeria Van Gogh. Apareceram ali as mais diversificadas imagens coladas, era uma grande quantidade de collages. Joãozinho Manta, já nessa época dos anos 70, não se contentava com recortes delineados e bem feitos da tesoura, com folhas cortadas milimetricamente retangulares pelo estilete.
O que se via na mostra eram folhas de revistas destacadas à mão, arrancadas das revistas, com seu rasgo irregular, amassado. Eram figuras recortadas de revistas velhas, figuras manchadas pelo tempo. Um aparente e proposital desleixo, como categoria estética, fazia parte da amostra.
Este irreverente Manta abrigou, e encobriu de modéstia sua obra, quase que clandestinamente ao longo de sua vida, e, no fim, por mais que tentasse divulga-la, não conseguiu muito. Começou a fazer collages em 1974, e com mais atividade em 1977. Os trabalhos de 1974 eram basicamente collages onde as figuras possuíam um caráter compositivo, sem nenhuma pretensão de alteração de sentido. Eram basicamente exercícios compositivos geniais de figuras recortadas, a meio caminho entre as collages pop e as collages de Schwitters. Nesta primeira fase já se anuncia o modo de??? como ele trataria, futuramente, os recortes fragmentos em suas collages. Em algumas já se manifestava o caráter surrealista.
Sua segunda exposição se chamaria All you need is love, numa clara homenagem aos Beatles de que ele tanto gostava. Interpreto, aqui, essa nomeação também como um endereçamento ao amor como força motriz da collage, a força da criação, a chispa que faz surgir à beleza.
O material da exposição, sem dúvida alguma, era inédito em termos de collage, All you need is love parecia musicar a arte da collage. Uma trilha visual a musicalidade da collage. Uma série de collages com papéis coloridos, cartolinas e papeis duplex, aplicados sobre um suporte irregular de cimento-amianto, insinuando paisagens quase abstratas. Neste espaço irregular as paisagens absorviam em toda sua profundidade o observador.
Diria que Manta conheceu, como ninguém, a arte da ilusão da profundidade da paisagem, sem utilizar-se dos recursos usuais da perspectiva. Suas paisagens estruturavam-se basicamente com dois ou três elementos (montanhas, barcos, contorno de uma vila, uma ilha), evocando toda a profundidade, até perder-se de vista.
O jogo de composição destes recortes se articula, entre uma ou duas grandes superfícies de papeis, simulando o céu, a terra, ou a água, e um ou dois pequenos recortes fragmento, como na collage All you need is love, evocando uma ilha.
Manta falava do ausente na representação, sugeria uma realidade mostrando imagens que se poderiam caracterizar como abstratas. Paisagens vaporosas, imprecisas, românticas, montadas a partir de uma economia quase minimalista.
Memórias, impressões visuais da pequena praia do Laranjal em Pelotas, do luar sobre a lagoa dos Patos, das pequenas vilas portuguesas do Algarve para onde costumava viajar.
Em árabe, Manta é manto: aquilo que encobre que agasalha. Nada mais certeiro afirmar que seu trabalho se relaciona com o céu, sheltering sky, com o manto da noite onde cintilam milhares de estrelas sobre as pequenas aldeias brancas do mediterrâneo e da Lagoa dos Patos. Nessas collages de cartolinas ele evidenciava a relação poética heideggeriana entre o céu e a terra, assinalada pela linha do horizonte, e a arquitetura que se instala entre estes dois planos.


João Manta. All you need is Love. Collage. Fonte da ilustração: Poster da exposição.


Ser esperado ou ser encontrado ao acaso parece ser uma das coisas que caracteriza sua vida artística. Entre os anos de 1978 e 1981, em uma de suas idas à Europa, um primo seu de Clermont-Ferrand, que não entendia quase nada de arte, lhe propôs apresentar um artista que conhecia, mas que não sabia se ele era um artista importante ou não. Manta, até então, nunca ouvira falar de Rolf During, nem imaginava, que este artista nascido em 1926, em Berna, na Suiça, foi amigo e passou pelas mãos de Matisse, Bonnary, Dufy, Braque, Picasso, Dalí, Gertrud Stein e Chirico
As poucas e despretensiosas collages que Manta carregava consigo conseguiram arrancar a admiração, o fascínio e a risada de Rolf, que acabaria dando para Manta um livro com as obras de Van Gogh para ele recortar e fazer suas collages. Manta além de recortar orelhas, recortou girassóis, cadeiras, retratos, camas, velas, etc. Suas colagens eram como novos quadros de Van Gogh. Essas collages ficaram perdidas no tempo.
Em 1981, quando retorna à Europa com a finalidade de estabelecer-se definitivamente, em Portugal coincide com uma exposição de Rolf em Berna, na Suíça. No mesmo ano, e na mesma galeria, Manta realizaria a exposição No name. Uma mostra de vários tipos de trabalho, naturezas mortas feitas com sprays, collages figurativas e paisagens. Manta morava, então, há quase um ano na Europa no intuito de produzir e tentar vender seus trabalhos por lá. Enquanto preparava, durante meses a exposição, certo dia no supermercado acabou conhecendo uma senhora muito simpática com a qual acabou conversando varias vezes, sem sequer saber seu nome; num desses encontros convidou-a para sua exposição. A dita senhora foi à exposição, e lá, depois de muito elogiar os trabalhos de João Manta, se apresentou com sendo Madame Picabia, esposa do finado Francis Picabia. Ele ficou sabendo, também, que Madame Picabia era uma das pessoas mais antipáticas da cidade.






















Praia das Nereidas. São Lourenço do Sul. RS. Brasil. Collage. Fernando Fuão.2007

9 de fev. de 2011
































A Janela que Alberti não viu. Fernando Fuão.Collage. 2009