7 de abr. de 2009




LAILA AIACH. Collages
Fernando Freitas Fuão. 26/ 02/ 99

ABISMOS [ 1992 ]
Distintamente das composições com figuras isoladas que Sergio Lima utiliza, Laila Aiach prefere empregar as estratégias de superposição e penetrações de papéis, permitindo assim diversas leituras em seu aspecto compositivo e sintagmático. Sem entretanto, menosprezar os significados paradigmáticos. Em abismos, um dos seus mais belos trabalhos de 1992, Laila vale-se intensamente destas estratégias compositivas. Pode-se observar vários elementos como cartolinas, fotografias e transparências articuladas em meio a um jogo de sobreposições e penetrações. Uma composição muito semelhante àquelas que o hasard costuma deixar quando guardamos as figuras nas pastas e voltamos a abrir no dia seguinte. Laila parece querer perpetuar esse momento do acaso. Fixando as imagens tal qual o produto do inesperado. Poderíamos tomar quase que como certo, não fosse os vestígios de disposição premeditados seguindo, um ordenamento das figuras segundo o eixo horizontal ou vertical.
Entretanto, o aspecto mais importante no trabalho de Laila seguramente não é a composição e sim o profundo significado que brota da articulação das figuras e dos recursos de cartões e cartolinas. Quando ela articula as figuras e cartolinas, faz com que as cores emitam significados. Um determinado significado para cada cor em relação ao conjunto.
Ainda dentro do tema da mulher, em Abismos Laila mostra a mulher como abismo. A nudez do corpo exposto, do contorno das formas. O abismo da lógica feminina. Da razão depilada.
O abismo das pernas abertas. O abismo das nádegas expostas.
Em Abismos um fantástico jogo se estabelece entre o conceito de peles e abismos. A relação de pele é ressaltada não por analogias, mas sim por um processo enfático e ampliado de cor e textura. Articulando as imagens da mulher com pele bronzeada, e um grande recorte de couro artificial quase da mesma cor da pele, com toda sua porosidade. A porosidade dos seios. A idéia de pele, membrana, superfície que cobre, está dissimulada por toda a superfície da collage. E, é certamente quando se vale de um papel semi-transparente, tipo papel cebola, que ela dá o sentido da pele como membrana, tecido permeável, hímen, tecido que conecta e une diversas imagens, os diversos papéis. A pele como velo unindo um lado a outro do quadro. O hímen fechando o verdadeiro abismo. A transparência definitivamente vem da mulher à direita. Para reafirmar a imagem de que o importante nesta situação é o corpo e não o rosto.
Finalmente os conceitos de pele são aplicados também à roupa jeans, ao pequeno biquini, ao cabelo, aos papéis, e evidentemente à fotografia como pele.
Quem sabe, numa segunda leitura encontraríamos um terceiro abismo se considerássemos o céu e o mar como os grandes abismos. Suas grandes superfícies como revestimento, como peles da terra, roupas jeans. Indigo blue. Quiçá seja por isso que a foto central do trabalho não seja colorida, para não evidenciar demais a idéia de azul como pele, como abismo. A transparência do papel deixa entrever as poucas gotas de cola, que Laila utilizou para fixar os papéis. A veladura percorre toda a composição na horizontal, superpondo-se, encobrindo parcialmente os papéis, penetrando-os e saindo adiante quase como uma costura. A própria idéia do papel como pele, como vestimenta, é dada também pela própria continuidade sugerida pela justaposição entre o papel e a imagem da roupa na foto principal.
As analogias no trabalho de Laila não cessam, em A Lua debulhando pérolas (1992), o mais interessante é que não emprega o jogo de analogias bastante difíceis de se ligarem, mas com o auxílio do título, das cores das cartolinas e fotografias rasgadas permite que façamos uma agradável ginástica para tentar estabelecer as correlações sugeridas. Não existem dessemelhanças aparentes. Existe sim, novamente um encadeamento de significados apoiado por cores, formas e textos.
Entre o divã e a Diva, se encontra “A Lua Debulhando Pérolas”.
Um fantástico jogo etéreo tecido através de analogias e conceitos formais sugerido pelas próprias figuras e cores da collage. Sobre um fundo azul nadam basicamente três recortes de fotografias. Nele são trabalhados conceitos, que de uma forma ou de outra acabam por juntar-se. Uma primeira analogia da lua é dada pelo divã e o recorte feito a mão em forma de meia lua. Daí surge A Diva recostada sobre a lua.
A idéia de lua liga-se à fotografia de uma pérola que por sua vez apoia-se também na fotografia, no divã. A imagem do divã como concha, como lua. A Diva como afrodite, que abriga a pérola, a mulher.
Finalmente um papel transparente e amarrotado, a manta sobre o corpo da mulher, misturando-se com o próprio tecido que a cobre. Surrealista na collage é o pé da Diva. O pé do divã que está deslocado de sua posição normal. Um outro pé.
Em um outro trabalho O TRATADO DO LIVRE ARBITRIO 1993. Outro jogo de imagens e relações visuais. A direita dessa collage vemos uma porta de madeira, uma porta de prisão com suas aberturas e suas grades, dela saem mãos agonizantes como se estivessem pedindo ajuda. A esquerda vemos uma folha, uma lâmina de madeira com seus recortes, suas incisões e logo abaixo segue uma sequencia de figuras femininas, escuras que fazem relação com o escuro das grades da porta. Esta seqüência de figuras formam a palavra KATL. As figuras também estão recortadas tal como a folha de madeira e a porta da prisão. Ainda no canto inferior direito da collage vemos uma chave, que faz relação com as grades da prisão. Esta chave serve para abri-la e também é a chave do enigma dessa collage. Por último podemos estabelecer uma relação entre a fotografia como encarceramento de imagens e o recorte destas imagens como a chave para a liberdade.
Vemos diferentes tipos de relações estabelecidas por Laila na collage Profanação (1993). A primeira delas entre o rosto da figura e a cor do papel cartolina que têm a mesma cor, a segunda relação entre a textura do cabelo e a textura da pedra, e seguem outras: o manto que cobre e rodeia a cabeça e a moldura, paspartout que rodeia a pedra, o bracelete em volta da mão e o marco branco como bracelete, o papel branco artesanal, como o manto branco, o cano metálico como referência ao braço e por último as manchas da pele e as manchas na pedra. As collages de Laila são riquíssimas de relações e interpretações por este motivo são grandes as possibilidades e leituras que podemos estabelecer em suas collages.
Laila utiliza mais sobreposição e penetração do que justaposição. Trabalha como suporte grandes superfícies de cartolina, papéis coloridos que ampliam a leitura da fotografia. Na maioria, não são paspartout ajudam a compreensão para estabelecer analogias. Utiliza elementos trouve geralmente isolados, como o caso da chave, na collage “O Tratado do Livre Arbítrio” (1993). Outra característica freqüente em algumas collages de Laila são os recortes feitos a mão. Laila em suas collages demostra ter uma facilidade de criar relações entre as imagens e os objetos trouve, em alguns casos parecendo sempre que estas relações se dão de maneira natural e como uma espontaneidade particular.
Dentre os trabalhos de Laila este é “maravilhoso”, principalmente pelo domínio das cores, suaves, fortes, às vezes as collages assumem ar vaporoso como por exemplo em “A Lua Debrulhando Pérolas(1992), ou ares de cartaz político como em “Profanação”(1993). São collages sempre vigorosas, fortes, quer por seu conteúdo, significado ou pelas cores.
O trabalho de Laila se diferencia dos trabalhos de Heloísa Pessoa, Ivanir de Oliveira e Lya Paes de Barros à medida que nos detemos e percebemos sua maneira de trabalhar as relações criadas e estabelecidas entre as imagens escolhidas, a preocupação com o conteúdo simbólico das imagens. Na maioria de suas collagens são imagens fortes e esta preocupação também se estende para os títulos da collages. Poderíamos chamar suas collages de poemas visuais, tal é a relação e dialogo estabelecido entre as imagens e objetos, formando num todo collages de composição completa, que unem todos os elementos essências para a construção de uma collage.
RECEITA DE COLLAGE
Texto de Sergio Lima

Como contribuição ao atual levantamento efetuado sob os cuidados de Gabriel Borba e sua Cooperativa, tomamos a iniciativa de encaminhar uma receita de arte, dentro da técnica de “collage” (colagem como linguagem), abrangendo critérios, métodos, materiais e processamentos como segue:
“Os critérios que adoto na composição, no resultado de cada quadro decorrem do próprio processo que estabelece o meu debruçar-se sobre essas imagens ou fragmentos, que estabelece o meu trabalho.
Diria, a grosso modo, que existem três etapas distintas desse trabalhar.
A primeira etapa seria no campo das predileções, a segunda seria no campo das permutações, e a terceira seria no campo da execução pictórica ou técnica do quadro. Essas etapas estão sempre interligadas, e por vezes acontece de se superporem, com o detalhe que só nas duas primeiras existem o acaso e a necessidade (vide “hasard-objetif”); enquanto que na terceira, a da execução plástica, verifica-se todo um rigor, o qual deriva de uma posição de artista plástico.
Vou procurar rapidamente descrevê-las por alto.
Primeira etapa: olho revistas, publicações e jornais, ou freqüento locais onde olho objetos, como magazines, lojas e ferro-velhos, onde encontro ao acaso, imagens que me interessam, me seduzem, pelos motivos os mais variados, ou por uma predileção pessoal minha.
Guardo esse material, por um bom tempo (num mínimo de 4 a 5 meses), para que percam o referencial imediato e deixem de ter o impacto de novidade para mim. Depois, volto a esse material e os separo. Isto feito tudo separado e escolhido, jogo fora o que não vai ser utilizado naquele momento. Fico então com uma quantidade de objetos e recortes (ou imagens) a nível de um primeiro residual, que por sua vez, é guardado por outro tempo e período.
Meses depois, volto novamente a esse material e os seleciono uma segunda vez, através de sketchs ou desenhos rápidos anotando também elementos de cor, de nome, de títulos ou mesmo alusões de linguagem que “as figuras” me suscitem ou provoquem, quase que automaticamente e de forma bem livre.
Passo então a ter dois referenciais para cada uma das imagens selecionadas: um a nível de desenho (visual) e outro a nível de texto (poético), como fruto dos rascunho e anotações.
Segunda etapa: volto, a partir dos desenhos e dos textos, ao material inicial, e passo a estabelecer as analogias, aproximações, relações, etc. Em virtude da referência visual poética (de desenhos e textos) que me conduziu de volta ao material inicial, não ser a mesma que estabeleceu a sua escolha e seleção, acontece uma nova escolha: daquele material inicial surgem novas relações e um nível mais complexo, onde começam a se processar permutações: trocas intercâmbios, substituições, superposições, etc. Enfim, entra em circuito um caráter lúdico, ligado a uma ocupação de construção sensível.
A partir deste momento, os fragmentos (recortes, páginas, objetos, etc), isto é, as imagens, já existem em si e estão deslocadas fatalmente de seus contextos iniciais ou usos primários e deixam de se reportar, pois aos veículos e mídias que as usaram. O que vale dizer é que estes fragmentos deixaram de ser úteis e passaram a ser belos em si, a ter valores próprios.
E é nesse nível, ao nível desses valores, que então passo a operar e se dão as permutações, revelando, por assim dizer, os sentidos e significações até então ocultos ou indivisíveis (enquanto estas imagens estavam diluídas nos seus veículos corriqueiros). Então, como primeiro estágio dessa etapa, passo a ter conjuntos de significados cruzados, num recorte único, ou em dois, ou mesmo em mais fragmentos: e, como segundo estágio dessa etapa, passo a relacionar esse conjuntos já separados em anos anteriores (trabalho com colagem desde 1956), ou os que surgem do primeiro manuseio de uma nova primeira etapa (por coincidência de um período de tempo análogo que possui esta segunda etapa, ela acaba por coincidir com uma nova primeira etapa, e assim sucessivamente).
Notemos, que nessa segunda etapa, onde ainda predomina o “hasard-objetif” começam a surgir direções/sentidos que são dados pelo próprio material e por seus valores intrínsecos a nível de imagem. E como resultado, então passo as ter resíduos direcionados (ou, um conjunto de resíduos), de materiais diversos, elaborados e carregados emocionalmente, passando cada um a adquirir também um título que lhe dá um sentido - título esse que será mantido ou não no trabalho final.
Terceira etapa: cada resíduo é transporto para uma chassis (geralmente de duraplex com papel fabricano colado) ou espaço plástico, onde tem início um delicado trabalho de feitura (ou pintura), a partir de aplicações nessa superfície dos elementos necessários para a sua constituição, numa harmonia plástica, num quadro ou obra completa. É nessa etapa, por vezes demorada, que surgem os específicos recursos tradicionais de solução para a questão de composição e espaço através do valor cromático das formas, da observância de luz correta (nos diversos fragmentos), do desenho enfim (com recursos de pastel, lápis cera, lápis de cor, carvão, giz, aquarela, etc), e também através da própria colagem do resíduo impresso ou “do recorte” no suporte, com ou sem interferência de outros materiais (conforme o caso), e do seu acabamento num todo, como pintura. E como resultado temos então um quadro.
Observação: Quanto `a moldura, diria o seguinte: em virtude, justamente, do pouco hábito em olhar “processos de conhecimento” através de imagens e do enorme hábito de se julgar que tudo que está dentro de uma moldura é um quadro, passei a estender o que chamei de terceira etapa, ou seja (a feitura técnica, ao próprio acabamento do quadro na qualidade de objeto: isto é, ao seu todo emoldurado. Daí, no caso de determinados trabalhos meus, as molduras participarem diretamente da específica concepção plástica do mesmo, além de configurar com novo desenho o espaço do plano do chassis. O que, contudo não, transforma isso numa regra ou exigência.
Bom, nessas horas é que a gente se lembra da frase de Max Ernst: “Não é a cola que faz collage’.
Folha de São Paulo, 26 de março de 1978