7 de abr. de 2009

RECEITA DE COLLAGE
Texto de Sergio Lima

Como contribuição ao atual levantamento efetuado sob os cuidados de Gabriel Borba e sua Cooperativa, tomamos a iniciativa de encaminhar uma receita de arte, dentro da técnica de “collage” (colagem como linguagem), abrangendo critérios, métodos, materiais e processamentos como segue:
“Os critérios que adoto na composição, no resultado de cada quadro decorrem do próprio processo que estabelece o meu debruçar-se sobre essas imagens ou fragmentos, que estabelece o meu trabalho.
Diria, a grosso modo, que existem três etapas distintas desse trabalhar.
A primeira etapa seria no campo das predileções, a segunda seria no campo das permutações, e a terceira seria no campo da execução pictórica ou técnica do quadro. Essas etapas estão sempre interligadas, e por vezes acontece de se superporem, com o detalhe que só nas duas primeiras existem o acaso e a necessidade (vide “hasard-objetif”); enquanto que na terceira, a da execução plástica, verifica-se todo um rigor, o qual deriva de uma posição de artista plástico.
Vou procurar rapidamente descrevê-las por alto.
Primeira etapa: olho revistas, publicações e jornais, ou freqüento locais onde olho objetos, como magazines, lojas e ferro-velhos, onde encontro ao acaso, imagens que me interessam, me seduzem, pelos motivos os mais variados, ou por uma predileção pessoal minha.
Guardo esse material, por um bom tempo (num mínimo de 4 a 5 meses), para que percam o referencial imediato e deixem de ter o impacto de novidade para mim. Depois, volto a esse material e os separo. Isto feito tudo separado e escolhido, jogo fora o que não vai ser utilizado naquele momento. Fico então com uma quantidade de objetos e recortes (ou imagens) a nível de um primeiro residual, que por sua vez, é guardado por outro tempo e período.
Meses depois, volto novamente a esse material e os seleciono uma segunda vez, através de sketchs ou desenhos rápidos anotando também elementos de cor, de nome, de títulos ou mesmo alusões de linguagem que “as figuras” me suscitem ou provoquem, quase que automaticamente e de forma bem livre.
Passo então a ter dois referenciais para cada uma das imagens selecionadas: um a nível de desenho (visual) e outro a nível de texto (poético), como fruto dos rascunho e anotações.
Segunda etapa: volto, a partir dos desenhos e dos textos, ao material inicial, e passo a estabelecer as analogias, aproximações, relações, etc. Em virtude da referência visual poética (de desenhos e textos) que me conduziu de volta ao material inicial, não ser a mesma que estabeleceu a sua escolha e seleção, acontece uma nova escolha: daquele material inicial surgem novas relações e um nível mais complexo, onde começam a se processar permutações: trocas intercâmbios, substituições, superposições, etc. Enfim, entra em circuito um caráter lúdico, ligado a uma ocupação de construção sensível.
A partir deste momento, os fragmentos (recortes, páginas, objetos, etc), isto é, as imagens, já existem em si e estão deslocadas fatalmente de seus contextos iniciais ou usos primários e deixam de se reportar, pois aos veículos e mídias que as usaram. O que vale dizer é que estes fragmentos deixaram de ser úteis e passaram a ser belos em si, a ter valores próprios.
E é nesse nível, ao nível desses valores, que então passo a operar e se dão as permutações, revelando, por assim dizer, os sentidos e significações até então ocultos ou indivisíveis (enquanto estas imagens estavam diluídas nos seus veículos corriqueiros). Então, como primeiro estágio dessa etapa, passo a ter conjuntos de significados cruzados, num recorte único, ou em dois, ou mesmo em mais fragmentos: e, como segundo estágio dessa etapa, passo a relacionar esse conjuntos já separados em anos anteriores (trabalho com colagem desde 1956), ou os que surgem do primeiro manuseio de uma nova primeira etapa (por coincidência de um período de tempo análogo que possui esta segunda etapa, ela acaba por coincidir com uma nova primeira etapa, e assim sucessivamente).
Notemos, que nessa segunda etapa, onde ainda predomina o “hasard-objetif” começam a surgir direções/sentidos que são dados pelo próprio material e por seus valores intrínsecos a nível de imagem. E como resultado, então passo as ter resíduos direcionados (ou, um conjunto de resíduos), de materiais diversos, elaborados e carregados emocionalmente, passando cada um a adquirir também um título que lhe dá um sentido - título esse que será mantido ou não no trabalho final.
Terceira etapa: cada resíduo é transporto para uma chassis (geralmente de duraplex com papel fabricano colado) ou espaço plástico, onde tem início um delicado trabalho de feitura (ou pintura), a partir de aplicações nessa superfície dos elementos necessários para a sua constituição, numa harmonia plástica, num quadro ou obra completa. É nessa etapa, por vezes demorada, que surgem os específicos recursos tradicionais de solução para a questão de composição e espaço através do valor cromático das formas, da observância de luz correta (nos diversos fragmentos), do desenho enfim (com recursos de pastel, lápis cera, lápis de cor, carvão, giz, aquarela, etc), e também através da própria colagem do resíduo impresso ou “do recorte” no suporte, com ou sem interferência de outros materiais (conforme o caso), e do seu acabamento num todo, como pintura. E como resultado temos então um quadro.
Observação: Quanto `a moldura, diria o seguinte: em virtude, justamente, do pouco hábito em olhar “processos de conhecimento” através de imagens e do enorme hábito de se julgar que tudo que está dentro de uma moldura é um quadro, passei a estender o que chamei de terceira etapa, ou seja (a feitura técnica, ao próprio acabamento do quadro na qualidade de objeto: isto é, ao seu todo emoldurado. Daí, no caso de determinados trabalhos meus, as molduras participarem diretamente da específica concepção plástica do mesmo, além de configurar com novo desenho o espaço do plano do chassis. O que, contudo não, transforma isso numa regra ou exigência.
Bom, nessas horas é que a gente se lembra da frase de Max Ernst: “Não é a cola que faz collage’.
Folha de São Paulo, 26 de março de 1978

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