17 de abr. de 2009






AS COLLAGENS DA LINA BO BARDI
por Achylles Costa Neto
II

Marcelo Ferraz disse que: “Lina adorava fazer collages. Ela trabalhava na madrugada. Como dormia muito cedo, acordava muito cedo, perto das 4 horas da manhã. Era a hora que ela mais gostava, por causa do silêncio. Então, ia buscar algum trabalho para fazer, recortar.... Quando a gente chegava pela manhã para trabalhar, já estava lá com uma coisa meio pronta ou encaminhada para fazer. Então, ela tinha uns papeizinhos recortados ou já tinha visto alguma coisa em uma revista. Recortava muita coisa, juntava coisas na agenda. Em resumo, ela já tinha preparado o material que iria nos mostrar. Aí, a gente ajudava a montar ou colar esses desenhos de apresentação”. Lina percorria as revistas em busca de algo que pudesse servir para representar sua idéia, passeava pelas folhas, despreocupadamente, até que uma imagem lhe dissesse alguma idéia. Sobre esses “papeizinhos recortados” que fala Ferraz, tivemos acesso à sua pequena coleção de recortes ou pelo menos o que sobrou de suas atividades.
Lina era uma colecionadora. A idéia de coleção esteve presente em toda sua vida e em vários projetos de Lina Bo Bardi, como a sala de exposições de quadros do MASP, em suas inúmeras exposições de utensílios populares e nas coleções de objetos de sua casa. Talvez um certo gosto ou hábito que adquiriu do colecionador Pietro Bardi.
No estudo publicitário para um dos estandes da exposição da Agricultura Paulista, Lina propõe uma cena de trabalho em uma lavoura, com trator, figuras de boi e uma residência do campo, representando uma noite com cometas e estrelas. Para isso, cola um papel preto sobre o papel cartão creme e, sobre este, deposita quatro figuras. No fundo preto, que representa uma cena noturna, traça uma linha sinuosa com a tesoura e divide o papel preto em duas partes. Essa linha sinuosa que rasga a noite como a cauda de um cometa poderia ser analogamente lida como um sulco feito com o arado sobre a terra. Ainda para dar um aspecto mais lúdico, rústico e irreverente, Lina faz várias perfurações com uma agulha para representar um céu com estrelas. A fim de reforçar essa idéia, coloca uma nota no suporte indicando como deveria ser observada a imagem: “Olhar contra-luz”. Afinal, o que seria mais realista na representação de uma estrela? Pintar um ponto branco com pincel, colar uma estrela ou simplesmente furar com uma agulha e olhar contra a luz?
Das quatro figuras (o trator, o boi, o cometa e a casa) colocadas em primeiro plano, apenas a casa é fixa. As outras se movimentam e deixam rastros. Entre as figuras, o trator aparece com poucos detalhes. Seu contorno foi desenhado e recortado em papel vermelho, e seu arado desenhado à mão livre. Na outra imagem, os animais foram pintados de azul com flores rosas, lembrando a cultura e tradições nordestinas, como na imagem do bumba-meu-boi. Lina desenha primeiramente as figuras, pinta com caneta hidrocor sobre as imagens, recorta e cola sobre o suporte. Quanto aos desenhos, poderíamos interpretá-los como uma intervenção na imagem, uma espécie de “cosmética” da representação, uma tatuagem. A outra figura, localizada acima do trator, é uma fotografia de uma casa que lembra as construções do interior paulista. À direita, há um cometa recortado em papel ocre escuro, que fortalece a idéia de uma noite sem nuvens. A intenção de Lina, ao colocar o trator e o animal frente a frente, foi instigar um debate sobre a mecanização e a agricultura tradicional, um confronto da supremacia do animal, do ser vivo em relação à máquina.
Em outros conceitos que a retórica da collage nos apresenta, temos a fotomontagem para o projeto do teatro do edifício Taba Guaianases, em São Paulo. Nessa representação, Lina recorta uma arquibancada de um teatro grego, colando-a ao fundo do suporte. Pinta com aquarela – com uma coloração azul sutil – sobre as arquibancadas, para marcar a idéia de circulações entre as poltronas. O mesmo azul e uma aguada de preto vão fazer o trabalho de fechamento na composição, numa espécie de abraço. São linhas pinceladas que encerram e encenam o espaço. Há algumas escalas humanas sentadas na platéia e outra – o ator no palco central, de braços abertos – apenas delineada com uma ou duas pinceladas. No forro do teatro foi colada a fotografia de uma cobertura projetada para outro auditório, mais contemporâneo. O recorte, apesar do contraste, parece encaixar-se perfeitamente na proposta. Para fazer uma amarração na composição, pintou com pincel e nanquim as propostas dos palcos laterais. É aqui que esses conceitos iriam começar a aparecer em suas representações de projetos.
Poderia-se dizer que essa collage é uma representação ilusionística típica das perspectivas comerciais feitas para aprovação de clientes. Nela, tudo está opticamente correto – é feita para “enganar”, iludir, encaixada em um belo truque –, apesar de, nesse caso, não se tratar de uma perspectiva comercial. Existem sim, nessa representação, efeitos de trucagem. Nesses “truques” e nesse encaixe de ilusões, Lina articula o antigo e o novo, o passado e o presente, trazendo para ela um sentido mais poético. “A premissa básica da Collage deriva da Poética. O conceito de Poética compreende os materiais e procedimentos básicos que acionam a Collage: o fragmento, o recorte, a cola, os encontros e a sua permanência”, como disse Fernando Fuão.
A articulação de tempos distintos quase sempre provoca um efeito de “choque”, uma colisão. Segundo Fuão: “O shock é a presença do palpitar do silêncio no ruído visual”. Essa união de tempos, esses encontros, trazem a essência que a collage busca. Sobre isso descreve Fuão: “Um olhar que se deseja sobre as imagens, objetos e seres, detectando entre eles toda sorte de analogias poéticas com a intenção de provocar um encontro. A Collage, antes de mais nada, é provocação. [...] O encontro com seu espaço mágico permite à Collage revelar o desejo que a constitui. Equivale à mecânica de articulações de imagens que são reconstruídas. É por sua própria dinâmica, num descobrimento íntimo (revelação, recorte) de onde o fluir original acaba por gerar novas imagens que são fruto das realidades anteriores a nível do imaginário”. O encontro tem por finalidade conectar culturas e épocas diferentes. “O fenômeno está no interior da vista. [...] Conjugação visual, registro transitório de estranhas coincidências que se configuram no imaginário”.
O contato das duas fotografias – do teatro grego e da cobertura do auditório –, por serem destacadas de sua origem e aproximadas entre si, possui a sutil particularidade de atrair, narrar outras histórias, diferentes daquelas que representavam originalmente.
Lina Bo Bardi fez uma série de collages para mostrar e explicar a ocupação da plataforma panorâmica, o belvedere do MASP . Ela trabalhou através de collages com um artifício de papéis coloridos. No caso dessa representação, utilizou apenas fragmentos de papel em que prevaleceram a cor e os motivos infantis, lembrando uma maquete, uma animação. Eles foram usados como agente principal para representar o espaço. O museu está representado por uma perspectiva com um ponto de fuga, construída tecnicamente com réguas e esquadros. No desenho, o observador está bem acima da altura do museu, para possibilitar uma percepção mais abrangente. A ampliação das proporções da plataforma panorâmica parece convidar as quatro figuras recortadas a ocupar o espaço. “A idéia é que esse belvedere poderia ser e ter um grande uso, ser bastante desfrutado, ter equipamento para crianças, ser um lugar muito agradável de se vir. Então ela é hiperbólica nessa intenção. Exagera no espaço para dizer quanta coisa cabe aqui. Na realidade, isso cabe mesmo lá, mas se fosse mostrado de um ponto de vista correto, da fotografia, estaria tudo embolado, um brinquedo em cima do outro”. É através da collage que Lina irá concretizar a idéia de um lugar para múltiplos usos, como ela mesma descreveu: “O belvedere será uma praça, com plantas e flores em volta [...] E gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre. [...] Até as crianças irem brincar no sol da manhã e da tarde”. Os recortes utilizados nos brinquedos reforçam alguns princípios da collage – a brincadeira e a irreverência. O desenho e a posterior colagem ocasionaram o encontro de imagens que instigam a criação e a representação do projeto.
As figuras humanas de Lina Bo Bardi povoam o espaço, retomando o potencial de transmitir e fortalecer a sensação de um lugar alegre e movimentado. As vegetações, propostas como um jardim suspenso, são desenhadas à mão livre sobre os canteiros, feitos com régua. Eles emolduram e trazem a natureza para dentro do projeto. Cabe observar que, além de colorir as árvores ao fundo e os arbustos das floreiras com as tonalidades do verde, ela também usa a cor azul, que envolve os limites físicos do MASP. Essa cor traz a possibilidade de um espaço infinito, associando ao ar que suspende e envolve o museu e à água que contorna os espelhos projetados para receber os pilares do edifício. Mais uma vez, os elementos vegetal, água e humano estão presentes e confirmam que, reunidos as collages, contribuíram para a construção do estilo Lina Bo Bardi.
As duas primeiras collages, representadas à esquerda, foram primeiramente desenhadas e pintadas isoladamente em um papel mais rígido, utilizando-se dos traços do nanquim, das cores das aquarelas, das luzes, sombras e contrastes, para depois serem acrescentadas ao desenho. A imagem superior mostra um escorregador, com suas rampas deslizantes pintadas com aquarela vermelha que parecem animar a composição. Retorcidas e amarradas a dutos centralizados, com as inúmeras crianças que circulam entre elas, procuram proporcionar o movimento para o espaço externo ao museu. A outra figura abaixo mostra um carrossel multicolorido, sem cobertura, no qual os tradicionais “cavalinhos” foram substituídos por outros bichos e pássaros, como um tatu e uma arara. Suas cores fortes e variadas, que mesclam a aquarela e o hidrocor, traduzem a irreverência, dando a essas figuras maior intensidade dos que as outras duas que serão analisadas a seguir. A escolha e o projeto desses equipamentos proporcionariam uma diferenciação não apenas gráfica, mas, sobretudo, espacial.
As outras duas, à direita, seguem os mesmos princípios das anteriores – primeiro foram desenhadas e, depois, recortadas e coladas sobre o papel. A imagem em primeiro plano foi desenhada com caneta nanquim e pintada com aquarela, utilizando tinta guache branca sobre os dutos circulares para criar efeitos de brilho sobre essas superfícies. Na outra mais acima, Lina utiliza um papel laminado – papel de bala – para representar a esfera, uma bola de metal que produz no todo da imagem um chamamento, através de seu brilho e da irreverência do material utilizado. Essas quatro collages possuem, no lado esquerdo, sombras produzidas pela espessura do papel na cópia heliográfica. Esse relevo que as sombras ajudam a criar causa sensações e efeitos visuais ao observador.
Deslizar o dedo sobre a imagem ressaltada pela espessura é sentir a imagem que procura algum movimento, um pequeno objeto que parece querer saltar do suporte. Ela produz no observador uma necessidade de chegar mais perto, de tocá-la. Olhar também é pegar um desenho, iluminá-lo, projetá-lo. Ver é tocar. Poder passar as mãos sobre as coisas é fundamental para que possamos sentir e enxergar além da nossa visão. Lina se utilizou dessa técnica provavelmente porque este procedimento, em qualquer âmbito, permite jogar as figuras para qualquer lugar, testando suas aproximações, animações no espaço, antes de fixá-las no lugar final. O desenho, ao contrário, não permite isso, pois, na maioria das vezes, assinala já de entrada o local definitivo dos elementos. Daí advém o aspecto lúdico da collage – o jogo, a brincadeira, típicos das atividades infantis. A collage do MASP fala do que é capaz: de brincar.
A utilização do vão do MASP, bem como do belvedere, era de fundamental importância para Lina, uma vez que ambos representavam a liberdade. Em busca da melhor representação de suas idéias, ela desenvolveu vários estudos para sua ocupação. Podemos observar nas figuras a seguir outras collages para o museu nas quais Lina faz questão de frisar os dois ângulos horizontais de visão, que valorizam a utilização do grande vão como um espaço multiuso integrado com seu entorno
Em outra collage para o MASP, dessa vez para estudar os espaços do grande vão abaixo da laje do museu, os desenhos mesclam-se entre a régua e a mão livre, com grafite e nanquim sobre papel canson, onde tais figuras são escolhidas, recortadas, coladas e distribuídas para representar uma coleção de arte. Ela usa um ponto de fuga com régua para montar as linhas da perspectiva, onde deposita algumas pessoas e vegetações muito distante do observador. Há um exagero do espaço, mais alto e profundo. Nessa amplitude, a marquise – laje superior – parece flutuar sobre um fundo neutro.
Trata-se de um espaço desenhado e montado para produzir a sensação de estar entre obras de arte junto à liberdade de um vão de ar e de luz. Lina procurou evidenciar esse espaço como uma outra grande sala de exposição fora do museu, sem vidros, ao ar livre. Essa intenção pode ser percebida nas plantas e parasitas que crescem nas rachaduras da laje de concreto. Olívia de Oliveira comentou que: “Lina não espera o tempo correr e agir sobre a obra, ela já mostra o edifício em seu possível estado de ruína,[...] conflui o futuro e o passado no presente”. Aqui, a ilustração referencia a escolha de elementos na construção da idéia e eleva a collage a um grande apoio (várias formas de interpretação) e fortalecimento da mesma. “As ruínas só nos surgem carregadas de significado na medida em que expressam visualmente a demolição de um tempo presente e a possibilidade de ‘recriação’ de um tempo passado” (Fuão).
Assim, essas rachaduras da laje seriam interpretadas como uma abertura no tempo, uma associação com o espaço infinito. Ao desenhar as rachaduras, projetando o tempo futuro, Lina possivelmente quis passar uma idéia de que a obra pode ficar velha, gasta pela ação do tempo, mas nunca morrerá – é infinita como o espaço. Uma vez erguida, mesmo em ruínas ela permanecerá uma obra, um projeto, um conglomerado de idéias que se tornaram real. Ao mesmo tempo, a intenção de Lina ao evidenciar a ação do tempo no prédio – juntamente com o desenho de obras de uma exposição – pode ter sido a de mostrar (ao cliente) como seria o espaço já construído, já em uso, fugindo, dessa forma, da mera representação do projeto arquitetônico formal, frio e impessoal.
Em outro estudo para o mesmo espaço, aparecem obras e pessoas com proposta similar à da representação anterior. Lina procura evidenciar o parque do Trianon, no outro lado da Avenida Paulista, ao colar uma fotografia do lugar sobre o papel vegetal, que funciona como pano de fundo realista. É uma tentativa de ilusão, de encaixar-se na realidade. Convém observar que mesmo a collage como ilusão, nos anos 50, era uma técnica pouco utilizada no meio arquitetônico. Percebe-se que a laje do museu não foi pintada. Há ali apenas pequenos traços feitos com nanquim. Dessa forma, a laje causa surpresa, parecendo ser um prolongamento do céu. As escalas humanas aparecem em preto e as vegetações em tons de cinza. Lina trabalhou sobre a cópia heliográfica de uma montagem anterior feita em cores. As tonalidades são igualmente neutras, como na anterior. Observa-se que nas duas collages apresentadas anteriormente existem diferenças entre as suas representações. A primeira possui um fundo quase infinito, neutro, abstrato; na outra, o fundo – uma fotografia – é finito, tópico, regular.
As fotografias são fundamentais para se fazer collage. Através de figuras técnicas obtidas por essa “máquina de representar” podemos retirar fragmentos da realidade, captar e reproduzir o que o olho vê. Ela, no entanto, modifica as imagens, transforma os corpos em objetos. A Figura 70 é uma fotografia feita no segundo pavimento do MASP, destinado à pinacoteca, na qual Lina posa com “O escolar”, de Van Gogh, no meio da construção da obra. Ela organizou o cenário para essa foto, pensou detalhadamente no local do suporte e em sua própria posição, escolheu a obra e posicionou os operários. Parece ter havido ali algumas intenções na montagem do cenário, sendo um de seus resultados a possibilidade do espaço absorver a pintura, e da pintura seduzir o espaço da fotografia. Nessa figura, aparece um reflexo do céu no vidro do suporte projetado por Lina para os quadros da pinacoteca do museu, causando um efeito bizarro e, ao mesmo tempo curioso. A pintura de Van Gogh colada sobre esse céu, juntamente com seu suporte, aparentam ser um novo recorte colado sobre a fotografia de Lina no vão da pinacoteca. Uma collage acontecendo ali, naturalmente. Como se refere Fuão: “Collage consiste em deixar buracos sobre a superfície da fotografia. Collage é abrir janelas em falsas janelas. Verdadeiramente um ato de iluminação”. Dessa forma, todo o desenho contrasta com o que existe, e toda realidade se contrasta com esse desenho.
Lina foi, possivelmente, influenciada e incentivada por Pietro Maria Bardi a utilizar as collages para expressar e representar suas idéias, pois havia entre eles uma forte conjunção de pensamentos que determinantemente influenciou os projetos e as collages que faziam.
No início de sua vida artística, Pietro Maria Bardi desenvolveu algumas colagens . Em uma delas, a mais polêmica, a Tavoli degli Orrori – Mesa dos Horrores, é reproduzido um exemplo de arquitetura acadêmica, misturando moda, fotografias de monumentos, retratos, caricaturas e textos. Segundo Herta Wescher: “Bardi publica uma gigantesca montagem com um texto em que ele se pronuncia contra a arquitetura culturalista que se opõe a autêntica arquitetura moderna com suas construções romântico-elétricas. [...] Esta collage deve mostrar ao público os errados caminhos da política oficial italiana no campo da construção. Esta montagem, que é reproduzida pelas revistas, desencadeia uma discussão violenta sobre o objetivo e a trajetória da arquitetura”. A fotomontagem ficou famosa por seu caráter revolucionário, futurista e dadaísta.
As collages futuristas, influenciadas pelos papiers-collés de Picasso, utilizavam numerosos materiais da vida cotidiana, como madeira, ferro, vidro, jornais, recortes de revistas, papéis coloridos, etiquetas, bilhetes de trem, etc. Traziam para a superfície do papel novas realidades, novos elementos formais e figurativos com motivos abstratos. Nas collages futuristas, eram visíveis a vitalidade de sua expressão e seu dinamismo formal. Já o dadaísmo foi um grande movimento artístico internacional que se desenvolveu na Alemanha, nos anos 20, como forma de protestar contra a chamada cultura artística, tendo como um de seus maiores expoentes Hannah Höch. Ele era uma artista de pensar político e sentir social, igual a Lina. A união de ambas as qualidades indicou-lhe o caminho artístico. Suas collages se caracterizavam pela mistura de todos os conceitos e estilos, com ligações com o Expressionismo, Surrealismo e Construtivismo; enfim, um antiestilo proclamado de modo provocador. Como diria Götz Adriani: “Todo aquele que liberta a sua tendência mais pessoal é dadaísta”. O Surrealismo tem como uma das características básicas o fato de que cada artista escolhia o seu caminho, conforme suas predileções. Foi um estilo que revolucionou a linguagem, ligado direta ou indiretamente ao inconsciente, uma liberação total da imagem presa a qualquer conceito. O Surrealismo não se ocupou de invenções, mas de descobrimentos.
Enquanto Bardi procurava um caráter revolucionário em suas collages, Lina fazia com que seu estilo revolucionário fosse transmitido através de seus recortes e collages um tanto mais ingênuos. Podemos acrescentar vários elementos sobre a superfície do papel para dar vida a representação arquitetônica. O imaginário criado pela collage instiga o potencial projetivo e representativo da arquitetura.
A utilização deste procedimento em projetos de museus deu-se também no Museu à Beira do Oceano, com uma representação diferenciada das desenvolvidas para o MASP, como podemos observar a seguir.
Nos estudos para o Museu à Beira do Oceano, em São Vicente, observamos a fotografia da maquete feita para esse prédio inserida em um cenário. O conceito de sua arquitetura pode ser lido nas palavras referidas por Lina sobre esse projeto: “As finalidades serão as anunciadas por toda a verdadeira museografia moderna, o ambiente será de condições naturais, paisagísticas, climáticas, econômicas e sociais”. Ela faz estudos de cor para os pilares do museu, recortando-os e colando-os por traz da fotografia uma cartolina vermelha. Aqui, os elementos da composição, a fotografia e o papel procuram mostrar também a originalidade que a aproximação entre duas realidades diferentes pode provocar. Este papel vermelho aparece como uma pintura, com um caráter de substituição de técnicas – o papel substituindo a tinta.
Na collage desenvolvida para a área de exposição do museu, Lina cola fotografia sobre fotografia, para representar as obras expostas no seu interior. Poucas fotos em preto e branco foram detalhadamente escolhidas para compor o espaço. As figuras, imagens e objetos foram dispostos de forma hierárquica e limpa sobre espaços amplos. Uma perspectiva dos corpos no espaço produz, na sua leitura, uma articulação de planos, um achatamento de figuras. Isso faz com que a visão perceba primeiramente as obras de arte, o que, para esse estudo, é o mais importante.
Em outros dois estudos para esse mesmo espaço de exposição, Lina parece não se satisfazer com o resultado apenas do papel fotográfico e pinta sobre o mesmo com tinta guache branca e preta, para simbolizar o céu, as nuvens, o mar e uma pequena ilha. Sobre essas interpretações, Nelson de Paula, em seu estudo “Collage: um testemunho fenomenológico”, dedica significativa atenção à questão da superfície das fotografias impressas e à importância de pintá-las. Em seu livro, ele aborda este procedimento desde o conceito de experiência, as fronteiras do espaço, passando pela questão da intenção até chegar à collage como uma tatuagem. “A pele foi a primeira superfície de inscrição, o primeiro suporte de representação. Quem faz collage não escreve nada, inscreve. (In)screver é escrever em profundidade, escrever dentro. E aí, a collage torna-se igual à tatuagem”. As inscrições de desenhos, pinturas sobre as figuras ou fotos que Lina fazia vêm ao encontro das collages de Nelson de Paula: “A collage é o testemunho, o rastro. Algo arrancado do ente corpóreo que habitamos, o qual não chama ‘mundo’, mas ‘cosmos’. Essa revolução é a revolução simbólica. [...] Colar é um ato voluptuoso. Recortar é um ato de curiosidade. E riscar é um ato operacional, faz parte da mecânica do amor. Tal trabalho está ligado ao conceito de maquilagem. A maquilagem ora (hora) esconde, ora (hora) revela. No fundo, o que ela busca é o êxito poético, o encantamento. Este só ocorre devido à dignidade da significação. Decifrar a maquilagem é decifrar a máscara”.
Observa-se que Lina utiliza a mesma base do papel fotográfico para construir outra collage, substituindo os quadros e esculturas da sala de exposição. Ela possivelmente montou a primeira, fotografou-a e, posteriormente, remontou a outra, obtendo assim uma nova exposição, uma nova collage. Há, na disposição espacial dessas imagens sobre o vazio do espaço, uma aproximação com as obras do pintor De Chirico, sendo que uma das imagens utilizadas por ela é uma obra do artista– localizada abaixo à direita –, cujos objetos também se apresentavam soltos em seus quadros, evidenciando o aspecto metafísico do espaço. O aspecto surrealista e a técnica como forma de representação dessa imagem são percebidos na linha do horizonte ao fundo, que mostra o infinito e resgata uma proximidade inclusive com a obra de Salvador Dali.
Também semelhante ao estudo feito para o Museu à Beira do Oceano é a collage que Mies Van der Rohe fez para o Museu para uma cidade pequena, datada de 1942. Ele articula planos abstratos e esculturas soltas no espaço, depositando uma fotografia da Guernica de Picasso, assim como Lina fez com a obra do De Chirico. São surpreendentemente próximas uma da outra. “Traz o trânsito da collage ao objeto trouvé da fotografia”, numa mesma topologia; elas se coincidem no que se refere à utilização desse tipo de procedimento para representar espaços de arquitetura.
Em outra collage para o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, a arquiteta resgata a profundidade do espaço. Segue os mesmos princípios utilizados para as collages do MASP e para o Museu à Beira do Oceano: amplas salas construídas com linhas de perspectiva que mostram grandes profundidades, obras “soltas” pelo espaço que parecem flutuar pelo suporte, e os usuais efeitos de liberdade e transparência dos vidros. Ela representa obras de arte dentro do museu através de imagens que lembram obras de arte. As que estão fora foram desenhadas com caneta e coloridas com aquarela. Essas obras – esculturas permanentes – aparecem desenhadas junto ao Parque do Ibirapuera e do perfil da cidade, ao fundo. Algumas dessas linhas ficaram no grafite; outras foram reforçadas com a caneta BIC, sendo ora traçadas mais leves, ora mais reforçadas.
Sua maneira revolucionária é traduzida aqui quando recria os expositores com base de pedra goiás. Eles foram desenvolvidos para uma exposição temporária com o sistema de “cavaletes”, como Lina informa no suporte. Não seriam mais de vidro, como no MASP, mas painéis de madeira para serem utilizados dos dois lados. A fim de representar as obras fixadas nos painéis, ela cola sobre o desenho diferentes fotografias retiradas de revistas, algumas abstratas, outras não, com a mesma proposta adotada no estudo para o Museu à Beira do Oceano. A imagem da direita, mais escura, contrapõe-se com as manchas de nanquim preto ao fundo, que representam o piso de borracha, fazendo um contraponto para a composição. Há inúmeros textos explicativos sobre os materiais e as cores das paredes, pisos e forro. Aparecem também detalhes da caixilharia dos vidros, tipo de luminárias e iluminação, assim como informações sobre os painéis. Os textos são escritos dentro de “balões”, como numa história em quadrinhos. Percebemos também que esses círculos e elipses são como extensões das bases em pedra dos expositores.
Dessa forma, as representações com este procedimento tornam-se expressivas, não apenas pelo ato de colar, mas de significar o objeto representado e encaixá-lo dentro de um outro contexto. Através dela, se alimenta o processo criativo, o imaginário. Aquela “chispa” produzida pela collage poderia ser considerada como um combustível gerador de idéias. Para Hannah Höch: “A técnica da collage é o paradigma de um princípio de mistura, baseada numa seqüência de decisões. A primeira decisão é o recorte. É a mais radical porque se refere à destruição de um dado conjunto. A segunda decisão daí resultante é a nova ordenação das parcelas”#. Misturar procedimentos e técnicas, decidir opções de projeto, todo esse processo, esse ato de reapresentar idéias, costumava ser bastante claro para Lina Bo Bardi. Cabe salientar que toda imagem construída por ela é uma representação de sua vivência. Com isso, obtinha resultados consideráveis na sua forma de criticar o tradicional. Utilizava e desenvolvia as collages como a expressão da liberdade – elas, por si só, já são a própria liberdade.