11 de dez. de 2009

Entrevista a Floriano Martins,
uma conversa sobre collage e poesia

Fernando Freita Fuão,
Carla Schneider
e Mariane Fabris


Como cuidas das figuras que recortas?
Não recorto figuras para um arquivo, tanto quanto não faço anotações para poemas.
Tenho a dificuldade em mim das coisas se guardarem para depois, dado o desprendimento
de minha natureza, talvez. O tempo da collage, cada trabalho em si, possui a extensão do
que a peça julga necessário para de concluir. Creio que se dá uma espécie de convulsão
interior, até que tudo se dissipe. O que faço, isto sim, são anotações de memória; vão se
tecendo insinuações, pequenos traços, sombras etc. Em parte, recorto figuras de
memória;em parte, me entrego ao vertiginoso jogo do acaso.
Creio que as figuras que não forem localizadas naquele momento em que me sento para
definir a collage, digamos, para montá-la, não estavam, por uma outra razão, prontas para
aquela peça. Como as imagens de um poema – ainda que traga comigo uma necessária idéia
geral daquilo que pretendo. Nada mais que isto.
A collage que fazes estabelece alguma relação com teu passado?
Tanto quanto com o meu futuro, ou seja, estabelece uma relação intrínseca com a
experiência, com a fluência da vida em mim. Tudo o que crio está em permanente diálogo
com o que sigo sendo. A collage nada mais é do que um dos tantos reflexos de minha
natureza.
Gostaria que falasses um pouco do teu entendimento de collage como um teatro de
imagens, um drama, uma representação.
Criamos desde o silêncio, desde o invisível. Toda a criação é diálogo, ou seja, busca
estabelecer um diálogo entre ser e mundo. Tudo o que julgamos fundar: a representação de
um desejo, um dramatizo, o drama coletivo de nossas experiências individuais. Não vejo
razão para a collage ser dissociada do poema, do teatro, do cinema. Lidamos com imagens,
em toda e qualquer circunstância da expressão artística. Creio que reside na fusão do
dramático com o lírico o toque mais fascinante, mais profundo, que se pode imprimir ao
objeto artístico. A dinâmica de uma collage deve ser também a dinâmica de uma
representação, de um teatro de imagens.
Por que dizes que a collage é reencarnação?
Segundo o Budismo, o que vivemos como homens é o estagio mais elevado do Carma.
Assim me parece que a ação que sofre a imagem no âmbito da collage, qualquer que seja o
estágio anterior, irá viver ali o seu grande momento de esplendor, de magnitude. Algo
como um ressurgimento, mas baseado na idéia de que esteve anteriormente em preparo para
a debulha de seu fulgor.
Uma frase tua me provocou um arrepio de prazer: “A tesoura age na medula da
memória”. Gostaria que me explicasse um pouco mais. Também não ficou claro a tua
posição em relação à memória, à foto como memória, já que fotos, para mim, não são
memórias, e sim registros, e a foto impressa não passa de uma imagem.
Decerto que a fotografia é um registro. Quando digo que a tesoura age na medula da
memória pretendo ir além dos registros. Tudo o que tocamos é memória. Somos memória
se fazendo a cada instantes. Portanto, tudo o que cortamos também é memória – trata-se de
uma perspectiva filosófica e não meramente uma técnica. A tesoura age exatamente neste
tecido vital que é o tempo. A fotografia, que certamente não passa de um recurso, eu a vejo
filosoficamente como um recurso da memória, já que selecionamos entre tantas aquelas que
nos significam algo em particular, algo que de alguma maneira já vivemos.
De que maneira tua poesia penetra na collage e vice-versa? Existe realmente uma
realmente uma relação direta, tal como se observa nos trabalhos de Sérgio Lima, nos quais
ele transcreve, quase que literalmente, suas collages para a poesia?
Não vejo razão para que se estabeleça, em meu caso, uma dissociação entre poema e
collage. Fazes referência ao Sérgio Lima e poderíamos acrescentar o chileno Ludwig
Zeller. Se acaso nós fizéssemos um filme ou uma escultura, decerto esta outra faceta de
nossa expressão artística comungaria com as demais. Isto se dá por uma afinidade de
natureza estética, de principio estético. Seja como for, discordo quando falas em transcrição
literal, o que acabaria por tornar dispensável uma das duas expressões: o poema ou a
collage. Creio que há um diálogo e uma complementação, em uma palavra: comunhão.
Reitero aqui a minha atração pelas bodas do dramático com o lírico. Através do poema,
tenho conseguido expressar melhor esta minha intenção. Sou um aprendiz ainda menor no
que diz respeito a collage. De qualquer forma, por esta vertente sigo e me enrosco e torno a
seguir.
O poema me parece também ter equacionado melhor os aspectos rítmicos. O fato é que o
pouco exercício da collage (incluindo o pensar menos nela – e isto por uma razão mesma
do envolvimento maior com o poema) faz com que pese mais um prato da balança, porém
isto não interfere no acima declarado. Imagine que canções não comporia Modigliani ou
que poemas não escreveria Keith Jarrett...
Pode a collage, depois de quase meio século, seguir despertando interesse no público,
tal como a pintura?
Vamos colocar assim: este século encontra, logo em seu inicio, no cinema e na collage a
eclosão de duas novas experiências artísticas. Contudo, a fotografia acabaria por tocar
melhor o mercado, certamente por seu vínculo imediato com a imprensa e com o mundo da
propaganda. Vale acrescentar que grande parte do cinema que se faz hoje é mero exercício
fotográfico, além de abusivamente retórico. Não nos esqueçamos que este século ostenta,
entre dezenas de outras e em inúmeros planos, esta contradição: é o século da guitarra
elétrica ao mesmo tempo da brutalidade da pasteurização do sentir.
Texto extraído do livro Alma em Chamas, de Floriano Martins, 1998. Ed. Letra e Música.
Paginas 288 a 292

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