9 de abr. de 2009

LYA PAES DE BARROS. Collages









Texto de Fernando Freitas Fuão e Michele Finger.26/02/99


Em um encontro do grupo surrealista na casa de Lya Paes de Barros, tivemos a oportunidade de ver uma retrospectiva de seus trabalhos. Os primeiros trabalhos apresentados eram pinturas, de um período em que a artista pintava sementes de amendoins, elevados a uma escala macro, visto desde a ótica de um objet trouvé. O tema principal, as sementes de amendoim, era extremamente ligado ao sensual, às formas arredondadas, envolventes e aconchegantes, lembrando ninhos. O fascínio inicial despertado pelo objeto amendoim: pela semente -até então ninguém suspeitaria que metaforicamente eles cresceriam e liberariam uma explosão de imagens de plantas.
As sementes, se tornaram florestas, selvas e ganharam formas surreais em muitas composições. Os trabalhos desta primeira fase eram um caminho, uma busca, uma procura e uma inquietação em representar as diversas formas, volumes, composições que aquele amendoim pudesse gerar, chegando algumas vezes a abstração da figura.
Lya produziu uma pintura que não deixa de ser uma colagem de plantas, árvores, fazendo uma colagem no seu sentido mais simples de acumulação. Durante algum tempo Lya desenvolveu a pintura em paralelo a suas collagens, sem que uma técnica interferisse substancialmente uma na outra.
Parece que, Lya não se fixou pela collage.
Não se deixou asfixiar pela cola. Compreendeu através de suas investigações e estudos o sentido mais profundo da transformação do significado das coisas e do mundo. E em vez de transformar, transmutou o universo da collage para sua pintura.
Nesta sua última fase suas collages se misturam com suas pinturas com betume, nas quais Lya pinta sobre o suporte de pequenas chapas de eucatex, de dimensões 15 x 30 cm.
O seu trabalho mudou completamente, as pinturas dos amendoins passaram a ser apenas estudos, perto do que agora vemos: trabalhos de extrema delicadeza, minunciosidade, perfeccionismo nas formas, na composição, tudo é muito bem elaborado. Num trabalho de paciência oriental.
Lya grafa também poesias nestas pequenas tavoletas que acompanham as placas do quadro, literalmente dípicos com ar medieval-renascentista próximos a Bosch. São tábuas bordeadas de tinta dourada que dão ares também ao kitsch e ao vulgar. Assim move-se o trabalho das placas, na despretensão do casamento do desejo, do sofisticado, com o vulgar, e o ingênuo.
Nesta dialética ou casamento seu trabalho ganha um outro nível de leitura e vai além, sai do orgânico, adquire ares de paisagens orientais, aproxima-se ao arte psicodélico, e ao abstracionismo, tudo isso somado a presença de pequenas figuras recortadas denunciando ou referenciando a importância e dependência com a collage.
Dentro da lógica e da terminologia do surrealismo seu trabalho transborda, excede, e atinge os limites do maravilhoso. Suas collagens-pinturas, -por que não chamar asssim-, são cenários fantásticos, oníricos, orientais. Sua visão traz a tona o arquétipo da Hyleia, da floresta, da floresta encantada da infância de todos nós. Algumas vezes, essas florestas apresentam-se um pouco dark, mas sempre banhada de uma luminosidade vaporosa. Lya consegue nos transmitir essas sensações tão difíceis de serem representadas e descritas. Uma floresta dourada, enriquecida, sugestiva ao ponto da nossa imaginação sentir-se atraída e mergulhar neste território inóspito. O dourado entra em profuzão na obra enaltecendo todo o trabalho e contribuíndo para atingir o brilho do maravilhoso.
Lya cinziu-se de uma beleza e de uma riqueza impressionante, incorporou a collage na pintura em pequenas doses quase homeopáticas. Essas pequenas figuras recortadas articulam-se com as manchas de betume misturam-se facilmente e proporcionam idéia de homogeneidade e continuidade.
Na obra de Lya tudo se transfigura, transmuta aliás talvez seja essa a expressão mais oportuna para designar seu atual trabalho. Neste aparente abstracionismo que a obra de Lya sugere, cidades acabam também virando florestas. O conjunto habitacional Galaratese de Aldo Rossi, mistura-se a outras figuras de edificios anônimos numa grande collage. Suas cidades irônicamente tem aparência betuminosa, rementendo-se a idéia de cidades poluídas, ou cinzentas.
Em outro trabalho pequenos cavalos são incorporados a uma paisagem surrealista feita de manchas que sugerem montanhas, com um colorido típico de alguns quadros de Bosh e de Brueghel. Talvez nesta obra , o mais curioso seja o efeito de estranhamento de escala que estas pequenas figuras recortadas proporcionam, pois, ao incorporarem-se na obra, podemos pensar que elas são realmente cavalos muito pequenos em meio a uma paisagem normal, ou cavalos normais em meio a uma paisagem anormal. Seus trabalhos são abertos sugestivamente operam muito com a idéia de dupla leitura, entre o abstrato e o figurativo e alguns outros com a idéia de superposição de imagens distintas.
Lya nos mostra chapas em eucatex com escrituras, poemas, anotações de frases soltas que lhe ocorriam enquanto trabalhava, o texto escrito no seu conteúdo é muito rico, mas a maneira plástica como Lya os escreveu, a letra, a maneira de pintar essas placas e a sua composição cria uma desconexão plástica contrastante entre as chapas com poesia e as chapas pinturas. A impressão que temos ao olhá-las lado a lado é que foram feitas por pessoas diferentes, essas plaquetas escritas nos remetem à ex-votos. Mas este contraste entre o trabalho artístico (pintura-collage) e a poesia (texto escrito), deve-se a uma maior intimidade de Lya com a linguagem visual, e uma carência de familiaridade com a maneira de encaixar a escrita a estes trabalhos plásticos.
Parte dessa banalidade é porque, geralmente, as poesias que escreve são reinterações da imagem do quadro, sem muitas vezes nada a acrescentar, algo completamente oposto ao trabalho de Sergio Lima que se utiliza dos títulos do quadro como uma imagem distinta do quadro, para provocar a colisão de imagens.
Em sua obra “Quando o céu está sonhando no tempo em que estás fumando...”, pequenos anjos são colados numa vaporosidade de tons dourados, amarelos, cinzas e pretos, tudo isso assinalado por um retângulo que enquadra o vaporoso, logo abaixo um outro retângulo, de menor altura enquadra uma paisagem bastante terrena representada mediante manchas e com um grafismo que sugere cataclismas, ruínas, arquiteturas sobmetidas a destruição, tal qual as pinturas de arquiteturas fantásticas de Desiderio Monsu, ou do quadro “Cidades em chamas” de Bosh. Em seu trabalho: “E tudo que é pesado cai na terra....” “Passei meus dedos pelo muro da minha pele e com dez olhos enxerguei: a escritura que escrevestes, as mentiras que pregastes, os pedidos que fizestes”.
Manchas sugerem escritas, um retângulo de cor dourada e um círculo funcionam como uma lupa que clareia, ilumina, amplia as manchas escuras, revelando formas que sugerem nuvens, figuras humanas, e principalmente letras, pictogramas. A escrita das nuvens, a escritura da terra, e a das cidades.
Em seus trabalhos anteriores onde não aparecia ainda a presença das tavoletas com poesias, a influência oriental é marcante. Lya declarou certa vez, em uma conversa, que quando começou a pintar este tipo de coisa não tinha conhecimento das conhecidas paisagens orientais, e acabou recriando paisagens fantásticas.
Assim é o universo maravilhoso de Lya Paes de Barros.
Dentro da trajetória de Lya pode-se observar a mudança do modo como se utiliza das collages. Lya começou a trabalhar com a collage dentro da metodologia ou melhor dizendo, da receita (Nota) proposta por Sérgio Lima, que opera basicamente com conceitos e significados de alto grau. A forma com que Lya vem traballhando, da forma mais “simples”, de certa maneira que os limites entre a colagem e a collage são muito tênues, e que a descoberta do significado da experiência direta com a obra, independente do significado. “A experiência da criança não articula significado com prazer...”
Ao analisarmos algumas de suas antigas collages poderemos observar algumas das características utilizadas por Lya Paes de Barros.
Na collage-objeto, Fascinação de 1987 Lya estabelece relações entre duas imagens e alguns pequenos objets-trouvés, a direita vemos uma figura feminina meio encoberta por uma rede muito fina de linhas pretas, a esquerda a imagem de uma pirâmide do Egito que no seu cume tem a figura do sol radiante, ainda no lado esquerdo da composição vemos um bastidor circular que tem uma referência direta com a forma do sol, e que também por ser um bastidor de costura, se relaciona com as linhas que saem dele e criam um emaranhado em direção a figura feminina que esta a direita da collage. Ainda dentro deste bastitor Lya recorta um pequeno pedaço de tecido na cor azul e o costura com diversos pontos e entrelaçamentos, deixando este tecido totalmente preso e costurado no bastidor. Podemos ainda perceber alguns pequenos elementos em metal que apenas pontuam o espaço do trabalho.
Analisando uma segunda collage com o título “Enigma” de 1987 podemos observar que assim como na collage 1, Lya utiliza novamente a imagem de uma pirâmide do Egito e ainda nesta collage aparece um outro elemento neste caso a imagem da esfinge. Mas este é apenas um dos elementos desta collage, toda a composição foi criada sobre um fundo marrom, lembrando a cor da terra, da aridez do deserto. A direita vemos a figura da pirâmide e da esfinge, sobreposta a ela vemos uma imagem da silhueta de uma pessoa na areia, a sua sombra, e uma segunda imagem um pouco mais a direita também aparece outra silhueta: do braço e da mão de uma pessoa. A esquerda da composição estão coladas outras duas imagens, na parte superior imagens de engrenagens de relógios, e um pequeno relógio, logo abaixo vemos a silhueta de um beijo e novamente sobreposta a esta imagem Lya cola uma outra fotografia que aparece a sombra de uma pessoa sentada em uma cadeira. Dentro deste emaranhado de imagens fica explícito nesta collage a relação criada entre as sombras e as silhuetas das figuras e o próprio título da collage já se refere a este “Enigma” que é criado em torno das sombras, a imagem de uma sombra sempre é negra e nos revela o contorno de algo, deixando sempre em dúvida muitos outros elementos, como as cores reais, os detahes escondidos e encobertos pela sombra, etc. As sombras são enigmáticas.
Em uma terceira collage de título “O Ponto Mágico”, 1987, sobre um fundo preto Lya cria uma composição sensual. Na parte inferior da collage vemos ao fundo uma fotografia preto e branco de uma paisagem com montanhas, e aparecem algumas nuvens de neblina que encobrem o cume de algumas destas montanhas, sobre esta foto de paisagem vemos uma outra imagem de uma casal nu envolvidos em um abraço, os dois estão com seus olhos fechados num deleite, como num sonho de prazer. Lya sobrepos a esta imagem fotográfica um papel transparente, e copia a imagem do casal utilizando uma caneta esferográfica de traço fino, com esta imagem transferida para o papel de seda Lya opta por deslocar para cima e assim ter a imagem duplicada dos amantes, que parecem ter se transformado em um véu. Logo acima deles vemos imagens de nuvens e ainda colados sobre este céu, Lya usa pedaços de algodão que remetem as imagens das nuvens e compõe um universo de sonho e fluidez, que resaltam ainda mais a leveza da composição. Temos nesta collage uma perfeita relação e uma harmonia muito rica entre as imagens, os elementos e suas características, neste caso o elemento algodão veio reforçar ainda mais a idéia de sonho e como não, poderíamos de deixar de sitar aquela velha expresão dos apaixonados “Me sinto nas nuvens com você”, fica explícita nesta composição tão criativa realizada por Lya Paes de Barros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário