23 de abr. de 2009




AS COLLAGENS DA LINA BO BARDI

por Achylles Costa Neto
Lina Bo Bardi. Estudos para a revista Habitat. Collage
Lina Bo Bardi. Collage.Estudos para o pavilhão do SESC Fábrica da Pompéia. São Paulo. 1977.
Lina Bo Bardi. Collage. Exposição da Agricultura Paulista: Parque da Água Branca. São Paulo, 1951


I
Collage é um procedimento projetual cuja utilização de imagens distintas, geralmente já impressas, procura recriar novas linguagens e novos contextos a partir de outras figuras existentes. O que a diferencia, de fato, é a interpretação das linguagens que ela instiga. Seu princípio percorre a produção e a representação arquitetônica, constituindo-se como um objeto e um procedimento da arquitetura – um método projetual. Assim, se poderia dizer que ela está contida no processo de criação de um projeto e serve também como forma de apresentação para clientes. Collage é a arte do encontro de figuras, papéis, fotografias, através do ato de recortar e colar. Colar significa unir, e, nessa união, tem-se a possibilidade de combinar diferentes técnicas, como, por exemplo, a reutilização de resíduos impressos, registros fotográficos, com desenho feito à mão livre sobre uma superfície.
Embora muitas vezes Lina não utilizasse a collage explicitamente, esse procedimento se fazia presente no momento da criação, da apresentação e da obra arquitetônica. Ela não a utilizava com freqüência, mas a reconhecia como potencialidade no desenvolvimento das idéias projetuais e como coadjuvante no seu processo de representação. Inicialmente, as colagens aparecem nos seus projetos de capas de revistas e, posteriormente, vão passando, pouco a pouco, para seus desenhos e para seus projetos arquitetônicos. Em 1946, Lina dirige e produz uma série de collages para as capas das revista ‘A’ - Cultura della Vita, dando início à sua produção de periódicos. A revista continha artigos e fotografias sobre arquitetura, arte e atualidades da época.
Na capa da revista, ela utiliza-se da imagem de uma lata, que poderia ser de sardinha ou patê, e dentro dela cola uma fotografia com uma multidão de pessoas muito próximas umas das outras, dando a idéia de serem sardinhas oprimidas, ou esmagadas como uma massa de patê. A lata parece sobrevoar a fotografia-base e sua sombra projetada no solo fortalece tal leitura. Essa figura é colocada sobre outra fotografia, com grandes avenidas periféricas e prédios que se entrelaçam. Nessa fotografia, que serve como imagem base, ela cola um pequeno texto abaixo da letra “A” (que indica o nome da revista) e uma história em quadrinhos na parte inferior da revista. O texto visa esclarecer a proposta da edição. Diz que: “Nós vivemos confinados em ambientes insalubres, apertados na desordem das nossas cidades super lotadas. Todos devemos nos interessar com o problema da casa, se quisermos melhorar as nossas condições; viver melhor em alojamentos melhor organizados. ‘A’ divulga um referendo que tem o objetivo de determinar um mobiliário ideal. A participação de vocês é de máxima importância! A voz da opinião pública deve ser na base da reconstrução”.
Observamos na topologia dessa collage que ela está intimamente ligada aos desenhos dos projetos arquitetônicos de Lina. Na capa encontramos o desenho principal, os pequenos desenhos e os textos como narrativa orbitando o desenho principal. Só não estão presentes as setas e flechas indicativas. Observa-se também como Lina aproveitava suas representações como se fossem páginas de revista ou histórias em quadrinhos.
As revistas são um meio de divulgação, reprodução e propagação da própria arquitetura através de imagens. Segundo Fernando Fuão: “Revistas são superfícies de onde se projetam modelos. Sobre a superfície das suas páginas, o objeto arquitetônico se reproduz sobre a forma de três elementos constitutivos variáveis que, a princípio, coexistem simultaneamente: O desenho: matéria que documenta a gênesis da idéia do projeto (inclui também as formas tridimensionais de projetar). Explica a construção da fotografia porque, por sua vez, também é fotografado. A fotografia: elemento que documenta a realidade do projeto, ou do próprio desenho (vestido imagem). O texto: elemento que em princípio não faz mais que explicar as fotografias (vestido escrito)”
Mais tarde, em 1950, já no Brasil, Lina edita a revista “Habitat”. Ela prefacia na 1ª edição que “‘Habitat’ significa ambiente, dignidade, convivência, moralidade de vida, e portanto espiritualidade e cultura: é por isso que escolhemos para título desta nossa revista uma palavra intimamente ligada à arquitetura, à qual damos um valor e uma interpretação não apenas artística, mas uma função artisticamente social”.
Foram feitos três estudos para a capa da 1ª edição da revista, sendo a Habitat a que foi publicada. Também esses estudos foram desenvolvidos com a utilização de papéis coloridos e reutilização de material fotográfico impresso. Os materiais foram recortados em formas circulares, retilíneas e retangulares, e posicionados de maneira aleatória na face retangular da capa. Esse procedimento vinha, muitas vezes, acompanhado de desenhos feitos com grafite ou nanquim. Suas cores e texturas vêm da própria escolha da imagem previamente selecionada, recortada e, posteriormente, colada. O nome da revista é sempre formado por letras recortadas em papel, em cor diferente do plano de fundo da capa. Os materiais fotográficos e papéis coloridos, no caso da imagem do primeiro estudo, são divergentes das idéias representadas pelos grafismos que Lina apresenta.
No primeiro estudo faz desenhos à mão livre no papel vermelho e cola o rosto de um menino chorando. Sobre ele, pedacinhos de papéis verticais, como se fossem grades. A foto do menino preso por barras contrasta com os pássaros em liberdade desenhados à mão livre. A poética da imagem revela a própria essência que a collage traduz, ou seja, novas realidades e contrastes na aproximação de imagens distintas. Na outra capa Lina utiliza apenas papéis coloridos e fotografias sobrepostas. As letras do título seguem o mesmo procedimento do estudo anterior. No estudo definitivo foram coladas fotografias, desenhos e papéis coloridos, distribuídos como um mosaico sobre o fundo preto.
Em outros estudos para diagramação de revistas a arquiteta organiza um protótipo com dimensões de 7x9 cm, o que demonstra sua habilidade em edição de texto e imagem. Esse pequeno estudo faz lembrar uma fotonovela, uma narrativa através de recortes, reforçando a idéia da narrativa medieval e/ou das “representações originais” das quais fala Gombrich.
Segundo Lina: “O arquiteto [...] foi cada vez mais insistindo na apresentação espetacular, que vai, desde a perspectiva para o uso do comitente, até as maquetes animadas por pequenos brinquedos, e as fotografias ajustadas nas fotomontagens, numa espécie de visão falseada da realidade”. Essa “visão falseada da realidade” a que ela se refere no texto acima seriam as collages, que se encaixam dentro da ótica da perspectiva, isto é, simulam a idéia de profundidade. Aqui, o termo “visão falseada” vem carregado de uma forte consciência do verdadeiro ato de representar, que fortalece sua decisão sobre esse procedimento. Uma análise mais detida e cuidadosa das collages de Lina demonstra que, algumas vezes, ela se vale dessa falsidade da representação clássica para que suas idéias sejam melhor compreendidas. Entretanto, tinha consciência desses processos e acreditava que essas representações deveriam ser o menos “falsas” possível e deveriam facilitar a leitura e interpretação, extrapolando a visão tradicional.
Colar papéis em uma fotografia e recortar uma figura para reutilizá-la depois, completando-a com desenhos, foi uma das intenções de Lina na collage feita para um dos pavilhões do SESC Pompéia. Fotografias, desenhos e texto articulam-se nessa representação de uma forma muito peculiar, vistos de uma distância suficiente para não perder os traços do desenho. Parece que nos deparamos somente com três figuras. Há o encontro, a articulação, de três fotos simultâneas que não se juntam no papel, na nossa imaginação, como uma colisão de imagens. Às vezes essas fotos completam o desenho. Outras, é o desenho que completa, intervém sobre elas. Há ainda momentos em que desenho e collage dialogam, tocam um no outro. Trata-se de uma potencialidade visual observada por André Breton quando define que: “Collage é a maravilhosa faculdade de obter duas realidades completamente separadas sem abandonar o território da nossa experiência, de juntá-las e conseguir que saia uma chispa de seu contato, de reunir dentro de seu alcance dos nossos sentidos, figuras abstratas dotadas da mesma intensidade, do mesmo relevo que outras figuras, e de desorientarmos em nossa memória ao tirar um ponto de referência”
As três imagens estão centralizadas e um pouco acima na folha, ocupando menos da metade do suporte. A imagem maior tem aproximadamente quatro vezes o tamanho das duas menores. A maior é uma fotografia interna dos antigos galpões do SESC. Sobre essa foto, Lina deposita recortes de papel branco. Sobrepõe, como layers opacos, um por cima do outro para propor e estudar os acessos aos mezaninos através de rampas. Depois de colar, desenha em cima do papel sulfite algumas pessoas, para identificar seus acessos, uso e escala. Ela estende o espaço com linhas feitas com régua e caneta BIC, completando as estruturas da cobertura do galpão e do piso. Essas linhas acentuam a profundidade desejada para a inclusão das rampas. A fotografia se mescla com as rampas, fazendo nascer uma nova figura.
O fundamento da collage não reside na cola. É mais significativo do que o simples ato de colar. Como definiria a célebre frase de Max Ernst: “Se as plumas fazem a plumagem, a cola não faz a collage”. Em seu livro “Collage em nova superfície”, Sergio Lima faz uma distinção entre “colagem” e “collage”. Para ele, colagem é “todo material aplicado, por meio de cola num plano, como superposição, reunião, grupo ou ‘ajustamento aleatório de texturas’ numa superfície” . Collage seria a “exploração de uma nova sintaxe, a partir de imagens já conhecidas, ‘usadas’ por meio de cortes; collage é análoga à poesia”. É certo que não são papéis colados que fazem este procedimento, mas sim o encontro das figuras. Nesse encontro é que se conectam os objetos e os espaços que aguardam nossa interpretação, nossa conexão, e que agem como disse Fuão: “uma ponte que tem por finalidade conectar fragmentos de mundos, realidades distintas ou similares e em geral se configura como uma solução ao problema do transporte sobre o abismo do recorte. [...] A função da ponte antes de mais nada é transportar, reduzir distâncias, abolir o tempo da narrativa clássica”. Nesse caso, as linhas do desenho cumprem a função de ponte, de conectar um espaço no outro.
Para se fazer collage tem-se que ter várias figuras recortadas de antemão. Não se pode faze-las se não tiver nenhuma figura para depois fazer os encontros. O recorte é “a castração, amputação, e também com a circuncisão, um ritual de passagem que revela, mediante a prática do corte, uma nova realidade. [...] O corte é o que permite a fragmentação das figuras para sua posterior aproximação na collage. [...] É a confecção do abismo, da descontinuidade, do distanciamento entre os corpos, entre as linguagens” (Fuão).
Por outro lado, é possível também observar na collage arquitetônica de Lina Bo Bardi, mesmo quando não explicitamente, o quanto estava presente o princípio desse procedimento em seus projetos. Ela articula os velhos galpões da antiga fábrica do SESC Pompéia com o moderno prédio brutalista do Bloco Esportivo como fossem duas imagens distintas – literalmente um choque na paisagem. Nesse mesmo edifício podemos também comparar as suas “janelas buracos”, como um bunker bombardeado, um prédio em ruínas, que pode ser interpretado como uma outra collage. Há uma forte tendência em Lina de aproximar tempos, possibilitando consagrar seu pensamento, ter uma collage da sua própria vida, onde ali estão presentes o seu passado nostálgico, a lembrança da guerra e, possivelmente, de seu escritório bombardeado. Conforme Fuão: “As ruínas só nos surgem carregadas de significado na medida em que expressam visualmente o afundamento de um tempo presente e a possibilidade de ‘recriação’ de um tempo passado que não volta a repetir-se”.
Na outra imagem, embaixo à esquerda da Figura, Lina escolhe de sua “agenda” de recortes uma fotografia para mostrar uma das idéias que tinha para aquele espaço. Na fotografia, destaca a areia e as crianças brincando, deixando claro qual a utilização que seria dada àquele espaço. Completa a grafite o corpo e o rosto das crianças, que haviam ficado incompletos devido ao recorte da foto. Observa-se que as escalas das figuras humanas desenhadas, tanto as que foram depositadas nas rampas como as da fotografia, não se encaixam no plano teatral cartesiano clássico. Hoje, nesse espaço de exposições, não existe areia colocada no piso, mas percebe-se a importância dos elementos da natureza através da presença de um espelho d’água projetado para aquele lugar e denominado por ela de rio São Francisco. O recorte incompleto da fotografia foi concluído a grafite, para que a ausência da imagem fosse restaurada. Ela derruba literalmente a fotografia sobre o suporte e delimita um território que seria a extensão do piso do galpão, como um tapete. À direita dessa imagem é colado um recorte de revista sobre a base do suporte. O recorte mostra esculturas que parecem pertencer à região do rio São Francisco, que lembram pessoas vestidas com roupas coloridas e alegres, parecendo dançar. Não há interferência de outras collages ou desenhos sobre a imagem, mas há ali, no movimento e nas cores, uma vontade de que os futuros galpões do SESC Pompéia se tornassem um espaço popular de diversão. Parece evidente que eram essas pessoas “populares” que Lina pretendia que festejassem aquele espaço. Aqui, a idéia se traduz na imagem.