27 de abr. de 2009



A CASA DA DINDA.
Galpão de reciclagem. Padre Cacique. Porto Alegre. Brazil

24 de abr. de 2009

SESC POMPÉIA de Lina Bo Bardi,
uma collage grotesca surreal
Fernando Freitas Fuão
Para os arquitetos mais ortodoxos ou convencionais, dizer que o Sesc Pompéia pode ser considerado uma arquitetura onde estão presentes alguns argumentos teóricos pode ser uma blasfêmia. Conseguir ver uma collage no Sesc Pompéia pode ser uma coisa forçada. Mas vamos por partes. Um primeiro passo para considerar uma collage é a atitude adotada por Lina ao reciclar a antiga fábrica e justapor ou acrescentar um novo prédio que formalmente nada tem a ver, a priori, com a antiga fábrica. Uma abordagem mais ingênua, bastaria dizer que o simples fato de reaproveitar, ou reciclar a antiga fábrica dando-lhe uma nova função, um novo significado, bastaria para afirmar que é uma collage pois o simples fato de introduzir uma nova função lhe deu um novo sentido. Mas não interesando neste aspecto. Quero mesmo demonstrar que o novo edifício proposto por Lina parte de um principio fundamental da collage, o da justaposição ou encontro de dois elementos díspares, em uma conjugação, e que ela se serviu de um elemento pré -existente, uma espera para introduzir um novo elemento, as duas torres com forma de Bunker ou silo. E que estes mesmos elementos guardam uma relação associativa com a antiga fábrica. Estes elementos bruscamente introduzidos na paisagem, algo tão brutal e forte como o próprio MASP nas próprias palavras de Lina Bo Bardi, faz parte de estudo nada ingênuo, mas sim de um estudo bastante elaborado, e com fortes ligações a estética surrealista. Certa vez, conversando com Sergio Lima, lhe sugeri que o Sesc Pompéia possuia algo de surrealista mas que não conseguia detectar; ele respondeu-me que não conseguia ver nada de surreal e mais principalmente de collage. Mas a imagem do Sesc principalmente dos novos edifícios com suas passarelas continuavam a intrigar-me e constantemente ativar a minha mente como uma imagem que me remetia a imagens já vistas, e de reações desconhecidas entre eles e a antiga fábrica . As duas torres pareciam surgidas as vezes de uma gravura de Piranesi, as vezes como dois componentes cerebrais articulados que se comunicam constantemente por suas passarelas, a idéia de Bunker de um cenário de ficção científica , de um grande silo esburacado por um bombardeio, com suas aberturas irregulares, tudo isso sugeria o novo prédio, é uma sucessão de envios incessantes a outras formas, a descobertas, que não se relacionam com nenhuma forma ou edifício das proximidades. O nov edifícios eram literalmente o elemento, o fragmento do inesperado colocado ao lado da antiga fábrica. Entre eles não existe pelo menos a idéia primária de um edifício colado ao outro, apenas colado em proximidade, duas imagens em simultaneidade de shock. Entre um edifício e outro um, solarium com um pequeno riacho coberto por um deck. Não é uma collage, onde se tenta uma aproximação das imagens dos edifícios por simplicidade formal ou tipológica. A reação que se estabelece entre os dois (a antiga fábrica e os novos edifícios) se dá num plano de significados, de parentesco, de relações não explicitas de forma, mas por reações não aparentes, as reações, tais como as colagens surrealistas, deve-se encontrar na cabeça de quem vê estas colagens. A descoberta destas reações é a descoberta da collage. Nesse sentido, tal como os princípios da collage, ou da imagem surrealista, quanto mais distantes sejam estas reações mais brilho poético possui esta imagem. Sabe-se que Lina Bo Bardi nunca teve uma relação direta com o surrealismo, mas não se pode negar que provavelmente em sua formação européia tenha tomado contato com estes princípios, assim como o conjunto da Pompéia tinha um poderoso teor expressionista ."É verdade e isso vem de minha formação européia, mas eu nunca esqueço o surrealismo do povo brasileiro, suas invenções, seu prazer em ficar todos juntos de dançar e de cantar". A isso podia-se associar que como esposa de P.M.Bardi e de seu contato com o mundo da arte do folclore brasileiro, tudo isso colabora a idéia de que Lina conhecia um pouco, ainda que inconsciente, o processo de criação surrealista. Mas, isso não é tão importante importa nesse caso mais o produto que o processo. Lina sabia, isso por seus estudos, investigações sobre "O Direito ao Feio", que não existe um conceito de belo ou feio, e que a beleza surge da conjugação, de duas imagens-inclusive feias-, seu redesloucamento de contexto. Esse conhecimento pude observar um pouco, mediante sua habilidade em justapor objetos distintos, móveis, etc... Em sua casa, onde conseguia conjugar objetos do, folclore de arte e antiguidade européia. Lina tinha uma forte predileção pelo feio, e não cessava de lembrar que "esperava que o conjunto esportivo do Sesc fosse feito, bem mais feio do que o museu de arte de São Paulo".
Afinal o Sesc Pompéia possui todos os ingredientes de uma collage surrealista.

23 de abr. de 2009




AS COLLAGENS DA LINA BO BARDI

por Achylles Costa Neto
Lina Bo Bardi. Estudos para a revista Habitat. Collage
Lina Bo Bardi. Collage.Estudos para o pavilhão do SESC Fábrica da Pompéia. São Paulo. 1977.
Lina Bo Bardi. Collage. Exposição da Agricultura Paulista: Parque da Água Branca. São Paulo, 1951


I
Collage é um procedimento projetual cuja utilização de imagens distintas, geralmente já impressas, procura recriar novas linguagens e novos contextos a partir de outras figuras existentes. O que a diferencia, de fato, é a interpretação das linguagens que ela instiga. Seu princípio percorre a produção e a representação arquitetônica, constituindo-se como um objeto e um procedimento da arquitetura – um método projetual. Assim, se poderia dizer que ela está contida no processo de criação de um projeto e serve também como forma de apresentação para clientes. Collage é a arte do encontro de figuras, papéis, fotografias, através do ato de recortar e colar. Colar significa unir, e, nessa união, tem-se a possibilidade de combinar diferentes técnicas, como, por exemplo, a reutilização de resíduos impressos, registros fotográficos, com desenho feito à mão livre sobre uma superfície.
Embora muitas vezes Lina não utilizasse a collage explicitamente, esse procedimento se fazia presente no momento da criação, da apresentação e da obra arquitetônica. Ela não a utilizava com freqüência, mas a reconhecia como potencialidade no desenvolvimento das idéias projetuais e como coadjuvante no seu processo de representação. Inicialmente, as colagens aparecem nos seus projetos de capas de revistas e, posteriormente, vão passando, pouco a pouco, para seus desenhos e para seus projetos arquitetônicos. Em 1946, Lina dirige e produz uma série de collages para as capas das revista ‘A’ - Cultura della Vita, dando início à sua produção de periódicos. A revista continha artigos e fotografias sobre arquitetura, arte e atualidades da época.
Na capa da revista, ela utiliza-se da imagem de uma lata, que poderia ser de sardinha ou patê, e dentro dela cola uma fotografia com uma multidão de pessoas muito próximas umas das outras, dando a idéia de serem sardinhas oprimidas, ou esmagadas como uma massa de patê. A lata parece sobrevoar a fotografia-base e sua sombra projetada no solo fortalece tal leitura. Essa figura é colocada sobre outra fotografia, com grandes avenidas periféricas e prédios que se entrelaçam. Nessa fotografia, que serve como imagem base, ela cola um pequeno texto abaixo da letra “A” (que indica o nome da revista) e uma história em quadrinhos na parte inferior da revista. O texto visa esclarecer a proposta da edição. Diz que: “Nós vivemos confinados em ambientes insalubres, apertados na desordem das nossas cidades super lotadas. Todos devemos nos interessar com o problema da casa, se quisermos melhorar as nossas condições; viver melhor em alojamentos melhor organizados. ‘A’ divulga um referendo que tem o objetivo de determinar um mobiliário ideal. A participação de vocês é de máxima importância! A voz da opinião pública deve ser na base da reconstrução”.
Observamos na topologia dessa collage que ela está intimamente ligada aos desenhos dos projetos arquitetônicos de Lina. Na capa encontramos o desenho principal, os pequenos desenhos e os textos como narrativa orbitando o desenho principal. Só não estão presentes as setas e flechas indicativas. Observa-se também como Lina aproveitava suas representações como se fossem páginas de revista ou histórias em quadrinhos.
As revistas são um meio de divulgação, reprodução e propagação da própria arquitetura através de imagens. Segundo Fernando Fuão: “Revistas são superfícies de onde se projetam modelos. Sobre a superfície das suas páginas, o objeto arquitetônico se reproduz sobre a forma de três elementos constitutivos variáveis que, a princípio, coexistem simultaneamente: O desenho: matéria que documenta a gênesis da idéia do projeto (inclui também as formas tridimensionais de projetar). Explica a construção da fotografia porque, por sua vez, também é fotografado. A fotografia: elemento que documenta a realidade do projeto, ou do próprio desenho (vestido imagem). O texto: elemento que em princípio não faz mais que explicar as fotografias (vestido escrito)”
Mais tarde, em 1950, já no Brasil, Lina edita a revista “Habitat”. Ela prefacia na 1ª edição que “‘Habitat’ significa ambiente, dignidade, convivência, moralidade de vida, e portanto espiritualidade e cultura: é por isso que escolhemos para título desta nossa revista uma palavra intimamente ligada à arquitetura, à qual damos um valor e uma interpretação não apenas artística, mas uma função artisticamente social”.
Foram feitos três estudos para a capa da 1ª edição da revista, sendo a Habitat a que foi publicada. Também esses estudos foram desenvolvidos com a utilização de papéis coloridos e reutilização de material fotográfico impresso. Os materiais foram recortados em formas circulares, retilíneas e retangulares, e posicionados de maneira aleatória na face retangular da capa. Esse procedimento vinha, muitas vezes, acompanhado de desenhos feitos com grafite ou nanquim. Suas cores e texturas vêm da própria escolha da imagem previamente selecionada, recortada e, posteriormente, colada. O nome da revista é sempre formado por letras recortadas em papel, em cor diferente do plano de fundo da capa. Os materiais fotográficos e papéis coloridos, no caso da imagem do primeiro estudo, são divergentes das idéias representadas pelos grafismos que Lina apresenta.
No primeiro estudo faz desenhos à mão livre no papel vermelho e cola o rosto de um menino chorando. Sobre ele, pedacinhos de papéis verticais, como se fossem grades. A foto do menino preso por barras contrasta com os pássaros em liberdade desenhados à mão livre. A poética da imagem revela a própria essência que a collage traduz, ou seja, novas realidades e contrastes na aproximação de imagens distintas. Na outra capa Lina utiliza apenas papéis coloridos e fotografias sobrepostas. As letras do título seguem o mesmo procedimento do estudo anterior. No estudo definitivo foram coladas fotografias, desenhos e papéis coloridos, distribuídos como um mosaico sobre o fundo preto.
Em outros estudos para diagramação de revistas a arquiteta organiza um protótipo com dimensões de 7x9 cm, o que demonstra sua habilidade em edição de texto e imagem. Esse pequeno estudo faz lembrar uma fotonovela, uma narrativa através de recortes, reforçando a idéia da narrativa medieval e/ou das “representações originais” das quais fala Gombrich.
Segundo Lina: “O arquiteto [...] foi cada vez mais insistindo na apresentação espetacular, que vai, desde a perspectiva para o uso do comitente, até as maquetes animadas por pequenos brinquedos, e as fotografias ajustadas nas fotomontagens, numa espécie de visão falseada da realidade”. Essa “visão falseada da realidade” a que ela se refere no texto acima seriam as collages, que se encaixam dentro da ótica da perspectiva, isto é, simulam a idéia de profundidade. Aqui, o termo “visão falseada” vem carregado de uma forte consciência do verdadeiro ato de representar, que fortalece sua decisão sobre esse procedimento. Uma análise mais detida e cuidadosa das collages de Lina demonstra que, algumas vezes, ela se vale dessa falsidade da representação clássica para que suas idéias sejam melhor compreendidas. Entretanto, tinha consciência desses processos e acreditava que essas representações deveriam ser o menos “falsas” possível e deveriam facilitar a leitura e interpretação, extrapolando a visão tradicional.
Colar papéis em uma fotografia e recortar uma figura para reutilizá-la depois, completando-a com desenhos, foi uma das intenções de Lina na collage feita para um dos pavilhões do SESC Pompéia. Fotografias, desenhos e texto articulam-se nessa representação de uma forma muito peculiar, vistos de uma distância suficiente para não perder os traços do desenho. Parece que nos deparamos somente com três figuras. Há o encontro, a articulação, de três fotos simultâneas que não se juntam no papel, na nossa imaginação, como uma colisão de imagens. Às vezes essas fotos completam o desenho. Outras, é o desenho que completa, intervém sobre elas. Há ainda momentos em que desenho e collage dialogam, tocam um no outro. Trata-se de uma potencialidade visual observada por André Breton quando define que: “Collage é a maravilhosa faculdade de obter duas realidades completamente separadas sem abandonar o território da nossa experiência, de juntá-las e conseguir que saia uma chispa de seu contato, de reunir dentro de seu alcance dos nossos sentidos, figuras abstratas dotadas da mesma intensidade, do mesmo relevo que outras figuras, e de desorientarmos em nossa memória ao tirar um ponto de referência”
As três imagens estão centralizadas e um pouco acima na folha, ocupando menos da metade do suporte. A imagem maior tem aproximadamente quatro vezes o tamanho das duas menores. A maior é uma fotografia interna dos antigos galpões do SESC. Sobre essa foto, Lina deposita recortes de papel branco. Sobrepõe, como layers opacos, um por cima do outro para propor e estudar os acessos aos mezaninos através de rampas. Depois de colar, desenha em cima do papel sulfite algumas pessoas, para identificar seus acessos, uso e escala. Ela estende o espaço com linhas feitas com régua e caneta BIC, completando as estruturas da cobertura do galpão e do piso. Essas linhas acentuam a profundidade desejada para a inclusão das rampas. A fotografia se mescla com as rampas, fazendo nascer uma nova figura.
O fundamento da collage não reside na cola. É mais significativo do que o simples ato de colar. Como definiria a célebre frase de Max Ernst: “Se as plumas fazem a plumagem, a cola não faz a collage”. Em seu livro “Collage em nova superfície”, Sergio Lima faz uma distinção entre “colagem” e “collage”. Para ele, colagem é “todo material aplicado, por meio de cola num plano, como superposição, reunião, grupo ou ‘ajustamento aleatório de texturas’ numa superfície” . Collage seria a “exploração de uma nova sintaxe, a partir de imagens já conhecidas, ‘usadas’ por meio de cortes; collage é análoga à poesia”. É certo que não são papéis colados que fazem este procedimento, mas sim o encontro das figuras. Nesse encontro é que se conectam os objetos e os espaços que aguardam nossa interpretação, nossa conexão, e que agem como disse Fuão: “uma ponte que tem por finalidade conectar fragmentos de mundos, realidades distintas ou similares e em geral se configura como uma solução ao problema do transporte sobre o abismo do recorte. [...] A função da ponte antes de mais nada é transportar, reduzir distâncias, abolir o tempo da narrativa clássica”. Nesse caso, as linhas do desenho cumprem a função de ponte, de conectar um espaço no outro.
Para se fazer collage tem-se que ter várias figuras recortadas de antemão. Não se pode faze-las se não tiver nenhuma figura para depois fazer os encontros. O recorte é “a castração, amputação, e também com a circuncisão, um ritual de passagem que revela, mediante a prática do corte, uma nova realidade. [...] O corte é o que permite a fragmentação das figuras para sua posterior aproximação na collage. [...] É a confecção do abismo, da descontinuidade, do distanciamento entre os corpos, entre as linguagens” (Fuão).
Por outro lado, é possível também observar na collage arquitetônica de Lina Bo Bardi, mesmo quando não explicitamente, o quanto estava presente o princípio desse procedimento em seus projetos. Ela articula os velhos galpões da antiga fábrica do SESC Pompéia com o moderno prédio brutalista do Bloco Esportivo como fossem duas imagens distintas – literalmente um choque na paisagem. Nesse mesmo edifício podemos também comparar as suas “janelas buracos”, como um bunker bombardeado, um prédio em ruínas, que pode ser interpretado como uma outra collage. Há uma forte tendência em Lina de aproximar tempos, possibilitando consagrar seu pensamento, ter uma collage da sua própria vida, onde ali estão presentes o seu passado nostálgico, a lembrança da guerra e, possivelmente, de seu escritório bombardeado. Conforme Fuão: “As ruínas só nos surgem carregadas de significado na medida em que expressam visualmente o afundamento de um tempo presente e a possibilidade de ‘recriação’ de um tempo passado que não volta a repetir-se”.
Na outra imagem, embaixo à esquerda da Figura, Lina escolhe de sua “agenda” de recortes uma fotografia para mostrar uma das idéias que tinha para aquele espaço. Na fotografia, destaca a areia e as crianças brincando, deixando claro qual a utilização que seria dada àquele espaço. Completa a grafite o corpo e o rosto das crianças, que haviam ficado incompletos devido ao recorte da foto. Observa-se que as escalas das figuras humanas desenhadas, tanto as que foram depositadas nas rampas como as da fotografia, não se encaixam no plano teatral cartesiano clássico. Hoje, nesse espaço de exposições, não existe areia colocada no piso, mas percebe-se a importância dos elementos da natureza através da presença de um espelho d’água projetado para aquele lugar e denominado por ela de rio São Francisco. O recorte incompleto da fotografia foi concluído a grafite, para que a ausência da imagem fosse restaurada. Ela derruba literalmente a fotografia sobre o suporte e delimita um território que seria a extensão do piso do galpão, como um tapete. À direita dessa imagem é colado um recorte de revista sobre a base do suporte. O recorte mostra esculturas que parecem pertencer à região do rio São Francisco, que lembram pessoas vestidas com roupas coloridas e alegres, parecendo dançar. Não há interferência de outras collages ou desenhos sobre a imagem, mas há ali, no movimento e nas cores, uma vontade de que os futuros galpões do SESC Pompéia se tornassem um espaço popular de diversão. Parece evidente que eram essas pessoas “populares” que Lina pretendia que festejassem aquele espaço. Aqui, a idéia se traduz na imagem.

17 de abr. de 2009






AS COLLAGENS DA LINA BO BARDI
por Achylles Costa Neto
II

Marcelo Ferraz disse que: “Lina adorava fazer collages. Ela trabalhava na madrugada. Como dormia muito cedo, acordava muito cedo, perto das 4 horas da manhã. Era a hora que ela mais gostava, por causa do silêncio. Então, ia buscar algum trabalho para fazer, recortar.... Quando a gente chegava pela manhã para trabalhar, já estava lá com uma coisa meio pronta ou encaminhada para fazer. Então, ela tinha uns papeizinhos recortados ou já tinha visto alguma coisa em uma revista. Recortava muita coisa, juntava coisas na agenda. Em resumo, ela já tinha preparado o material que iria nos mostrar. Aí, a gente ajudava a montar ou colar esses desenhos de apresentação”. Lina percorria as revistas em busca de algo que pudesse servir para representar sua idéia, passeava pelas folhas, despreocupadamente, até que uma imagem lhe dissesse alguma idéia. Sobre esses “papeizinhos recortados” que fala Ferraz, tivemos acesso à sua pequena coleção de recortes ou pelo menos o que sobrou de suas atividades.
Lina era uma colecionadora. A idéia de coleção esteve presente em toda sua vida e em vários projetos de Lina Bo Bardi, como a sala de exposições de quadros do MASP, em suas inúmeras exposições de utensílios populares e nas coleções de objetos de sua casa. Talvez um certo gosto ou hábito que adquiriu do colecionador Pietro Bardi.
No estudo publicitário para um dos estandes da exposição da Agricultura Paulista, Lina propõe uma cena de trabalho em uma lavoura, com trator, figuras de boi e uma residência do campo, representando uma noite com cometas e estrelas. Para isso, cola um papel preto sobre o papel cartão creme e, sobre este, deposita quatro figuras. No fundo preto, que representa uma cena noturna, traça uma linha sinuosa com a tesoura e divide o papel preto em duas partes. Essa linha sinuosa que rasga a noite como a cauda de um cometa poderia ser analogamente lida como um sulco feito com o arado sobre a terra. Ainda para dar um aspecto mais lúdico, rústico e irreverente, Lina faz várias perfurações com uma agulha para representar um céu com estrelas. A fim de reforçar essa idéia, coloca uma nota no suporte indicando como deveria ser observada a imagem: “Olhar contra-luz”. Afinal, o que seria mais realista na representação de uma estrela? Pintar um ponto branco com pincel, colar uma estrela ou simplesmente furar com uma agulha e olhar contra a luz?
Das quatro figuras (o trator, o boi, o cometa e a casa) colocadas em primeiro plano, apenas a casa é fixa. As outras se movimentam e deixam rastros. Entre as figuras, o trator aparece com poucos detalhes. Seu contorno foi desenhado e recortado em papel vermelho, e seu arado desenhado à mão livre. Na outra imagem, os animais foram pintados de azul com flores rosas, lembrando a cultura e tradições nordestinas, como na imagem do bumba-meu-boi. Lina desenha primeiramente as figuras, pinta com caneta hidrocor sobre as imagens, recorta e cola sobre o suporte. Quanto aos desenhos, poderíamos interpretá-los como uma intervenção na imagem, uma espécie de “cosmética” da representação, uma tatuagem. A outra figura, localizada acima do trator, é uma fotografia de uma casa que lembra as construções do interior paulista. À direita, há um cometa recortado em papel ocre escuro, que fortalece a idéia de uma noite sem nuvens. A intenção de Lina, ao colocar o trator e o animal frente a frente, foi instigar um debate sobre a mecanização e a agricultura tradicional, um confronto da supremacia do animal, do ser vivo em relação à máquina.
Em outros conceitos que a retórica da collage nos apresenta, temos a fotomontagem para o projeto do teatro do edifício Taba Guaianases, em São Paulo. Nessa representação, Lina recorta uma arquibancada de um teatro grego, colando-a ao fundo do suporte. Pinta com aquarela – com uma coloração azul sutil – sobre as arquibancadas, para marcar a idéia de circulações entre as poltronas. O mesmo azul e uma aguada de preto vão fazer o trabalho de fechamento na composição, numa espécie de abraço. São linhas pinceladas que encerram e encenam o espaço. Há algumas escalas humanas sentadas na platéia e outra – o ator no palco central, de braços abertos – apenas delineada com uma ou duas pinceladas. No forro do teatro foi colada a fotografia de uma cobertura projetada para outro auditório, mais contemporâneo. O recorte, apesar do contraste, parece encaixar-se perfeitamente na proposta. Para fazer uma amarração na composição, pintou com pincel e nanquim as propostas dos palcos laterais. É aqui que esses conceitos iriam começar a aparecer em suas representações de projetos.
Poderia-se dizer que essa collage é uma representação ilusionística típica das perspectivas comerciais feitas para aprovação de clientes. Nela, tudo está opticamente correto – é feita para “enganar”, iludir, encaixada em um belo truque –, apesar de, nesse caso, não se tratar de uma perspectiva comercial. Existem sim, nessa representação, efeitos de trucagem. Nesses “truques” e nesse encaixe de ilusões, Lina articula o antigo e o novo, o passado e o presente, trazendo para ela um sentido mais poético. “A premissa básica da Collage deriva da Poética. O conceito de Poética compreende os materiais e procedimentos básicos que acionam a Collage: o fragmento, o recorte, a cola, os encontros e a sua permanência”, como disse Fernando Fuão.
A articulação de tempos distintos quase sempre provoca um efeito de “choque”, uma colisão. Segundo Fuão: “O shock é a presença do palpitar do silêncio no ruído visual”. Essa união de tempos, esses encontros, trazem a essência que a collage busca. Sobre isso descreve Fuão: “Um olhar que se deseja sobre as imagens, objetos e seres, detectando entre eles toda sorte de analogias poéticas com a intenção de provocar um encontro. A Collage, antes de mais nada, é provocação. [...] O encontro com seu espaço mágico permite à Collage revelar o desejo que a constitui. Equivale à mecânica de articulações de imagens que são reconstruídas. É por sua própria dinâmica, num descobrimento íntimo (revelação, recorte) de onde o fluir original acaba por gerar novas imagens que são fruto das realidades anteriores a nível do imaginário”. O encontro tem por finalidade conectar culturas e épocas diferentes. “O fenômeno está no interior da vista. [...] Conjugação visual, registro transitório de estranhas coincidências que se configuram no imaginário”.
O contato das duas fotografias – do teatro grego e da cobertura do auditório –, por serem destacadas de sua origem e aproximadas entre si, possui a sutil particularidade de atrair, narrar outras histórias, diferentes daquelas que representavam originalmente.
Lina Bo Bardi fez uma série de collages para mostrar e explicar a ocupação da plataforma panorâmica, o belvedere do MASP . Ela trabalhou através de collages com um artifício de papéis coloridos. No caso dessa representação, utilizou apenas fragmentos de papel em que prevaleceram a cor e os motivos infantis, lembrando uma maquete, uma animação. Eles foram usados como agente principal para representar o espaço. O museu está representado por uma perspectiva com um ponto de fuga, construída tecnicamente com réguas e esquadros. No desenho, o observador está bem acima da altura do museu, para possibilitar uma percepção mais abrangente. A ampliação das proporções da plataforma panorâmica parece convidar as quatro figuras recortadas a ocupar o espaço. “A idéia é que esse belvedere poderia ser e ter um grande uso, ser bastante desfrutado, ter equipamento para crianças, ser um lugar muito agradável de se vir. Então ela é hiperbólica nessa intenção. Exagera no espaço para dizer quanta coisa cabe aqui. Na realidade, isso cabe mesmo lá, mas se fosse mostrado de um ponto de vista correto, da fotografia, estaria tudo embolado, um brinquedo em cima do outro”. É através da collage que Lina irá concretizar a idéia de um lugar para múltiplos usos, como ela mesma descreveu: “O belvedere será uma praça, com plantas e flores em volta [...] E gostaria que lá fosse o povo, ver exposições ao ar livre. [...] Até as crianças irem brincar no sol da manhã e da tarde”. Os recortes utilizados nos brinquedos reforçam alguns princípios da collage – a brincadeira e a irreverência. O desenho e a posterior colagem ocasionaram o encontro de imagens que instigam a criação e a representação do projeto.
As figuras humanas de Lina Bo Bardi povoam o espaço, retomando o potencial de transmitir e fortalecer a sensação de um lugar alegre e movimentado. As vegetações, propostas como um jardim suspenso, são desenhadas à mão livre sobre os canteiros, feitos com régua. Eles emolduram e trazem a natureza para dentro do projeto. Cabe observar que, além de colorir as árvores ao fundo e os arbustos das floreiras com as tonalidades do verde, ela também usa a cor azul, que envolve os limites físicos do MASP. Essa cor traz a possibilidade de um espaço infinito, associando ao ar que suspende e envolve o museu e à água que contorna os espelhos projetados para receber os pilares do edifício. Mais uma vez, os elementos vegetal, água e humano estão presentes e confirmam que, reunidos as collages, contribuíram para a construção do estilo Lina Bo Bardi.
As duas primeiras collages, representadas à esquerda, foram primeiramente desenhadas e pintadas isoladamente em um papel mais rígido, utilizando-se dos traços do nanquim, das cores das aquarelas, das luzes, sombras e contrastes, para depois serem acrescentadas ao desenho. A imagem superior mostra um escorregador, com suas rampas deslizantes pintadas com aquarela vermelha que parecem animar a composição. Retorcidas e amarradas a dutos centralizados, com as inúmeras crianças que circulam entre elas, procuram proporcionar o movimento para o espaço externo ao museu. A outra figura abaixo mostra um carrossel multicolorido, sem cobertura, no qual os tradicionais “cavalinhos” foram substituídos por outros bichos e pássaros, como um tatu e uma arara. Suas cores fortes e variadas, que mesclam a aquarela e o hidrocor, traduzem a irreverência, dando a essas figuras maior intensidade dos que as outras duas que serão analisadas a seguir. A escolha e o projeto desses equipamentos proporcionariam uma diferenciação não apenas gráfica, mas, sobretudo, espacial.
As outras duas, à direita, seguem os mesmos princípios das anteriores – primeiro foram desenhadas e, depois, recortadas e coladas sobre o papel. A imagem em primeiro plano foi desenhada com caneta nanquim e pintada com aquarela, utilizando tinta guache branca sobre os dutos circulares para criar efeitos de brilho sobre essas superfícies. Na outra mais acima, Lina utiliza um papel laminado – papel de bala – para representar a esfera, uma bola de metal que produz no todo da imagem um chamamento, através de seu brilho e da irreverência do material utilizado. Essas quatro collages possuem, no lado esquerdo, sombras produzidas pela espessura do papel na cópia heliográfica. Esse relevo que as sombras ajudam a criar causa sensações e efeitos visuais ao observador.
Deslizar o dedo sobre a imagem ressaltada pela espessura é sentir a imagem que procura algum movimento, um pequeno objeto que parece querer saltar do suporte. Ela produz no observador uma necessidade de chegar mais perto, de tocá-la. Olhar também é pegar um desenho, iluminá-lo, projetá-lo. Ver é tocar. Poder passar as mãos sobre as coisas é fundamental para que possamos sentir e enxergar além da nossa visão. Lina se utilizou dessa técnica provavelmente porque este procedimento, em qualquer âmbito, permite jogar as figuras para qualquer lugar, testando suas aproximações, animações no espaço, antes de fixá-las no lugar final. O desenho, ao contrário, não permite isso, pois, na maioria das vezes, assinala já de entrada o local definitivo dos elementos. Daí advém o aspecto lúdico da collage – o jogo, a brincadeira, típicos das atividades infantis. A collage do MASP fala do que é capaz: de brincar.
A utilização do vão do MASP, bem como do belvedere, era de fundamental importância para Lina, uma vez que ambos representavam a liberdade. Em busca da melhor representação de suas idéias, ela desenvolveu vários estudos para sua ocupação. Podemos observar nas figuras a seguir outras collages para o museu nas quais Lina faz questão de frisar os dois ângulos horizontais de visão, que valorizam a utilização do grande vão como um espaço multiuso integrado com seu entorno
Em outra collage para o MASP, dessa vez para estudar os espaços do grande vão abaixo da laje do museu, os desenhos mesclam-se entre a régua e a mão livre, com grafite e nanquim sobre papel canson, onde tais figuras são escolhidas, recortadas, coladas e distribuídas para representar uma coleção de arte. Ela usa um ponto de fuga com régua para montar as linhas da perspectiva, onde deposita algumas pessoas e vegetações muito distante do observador. Há um exagero do espaço, mais alto e profundo. Nessa amplitude, a marquise – laje superior – parece flutuar sobre um fundo neutro.
Trata-se de um espaço desenhado e montado para produzir a sensação de estar entre obras de arte junto à liberdade de um vão de ar e de luz. Lina procurou evidenciar esse espaço como uma outra grande sala de exposição fora do museu, sem vidros, ao ar livre. Essa intenção pode ser percebida nas plantas e parasitas que crescem nas rachaduras da laje de concreto. Olívia de Oliveira comentou que: “Lina não espera o tempo correr e agir sobre a obra, ela já mostra o edifício em seu possível estado de ruína,[...] conflui o futuro e o passado no presente”. Aqui, a ilustração referencia a escolha de elementos na construção da idéia e eleva a collage a um grande apoio (várias formas de interpretação) e fortalecimento da mesma. “As ruínas só nos surgem carregadas de significado na medida em que expressam visualmente a demolição de um tempo presente e a possibilidade de ‘recriação’ de um tempo passado” (Fuão).
Assim, essas rachaduras da laje seriam interpretadas como uma abertura no tempo, uma associação com o espaço infinito. Ao desenhar as rachaduras, projetando o tempo futuro, Lina possivelmente quis passar uma idéia de que a obra pode ficar velha, gasta pela ação do tempo, mas nunca morrerá – é infinita como o espaço. Uma vez erguida, mesmo em ruínas ela permanecerá uma obra, um projeto, um conglomerado de idéias que se tornaram real. Ao mesmo tempo, a intenção de Lina ao evidenciar a ação do tempo no prédio – juntamente com o desenho de obras de uma exposição – pode ter sido a de mostrar (ao cliente) como seria o espaço já construído, já em uso, fugindo, dessa forma, da mera representação do projeto arquitetônico formal, frio e impessoal.
Em outro estudo para o mesmo espaço, aparecem obras e pessoas com proposta similar à da representação anterior. Lina procura evidenciar o parque do Trianon, no outro lado da Avenida Paulista, ao colar uma fotografia do lugar sobre o papel vegetal, que funciona como pano de fundo realista. É uma tentativa de ilusão, de encaixar-se na realidade. Convém observar que mesmo a collage como ilusão, nos anos 50, era uma técnica pouco utilizada no meio arquitetônico. Percebe-se que a laje do museu não foi pintada. Há ali apenas pequenos traços feitos com nanquim. Dessa forma, a laje causa surpresa, parecendo ser um prolongamento do céu. As escalas humanas aparecem em preto e as vegetações em tons de cinza. Lina trabalhou sobre a cópia heliográfica de uma montagem anterior feita em cores. As tonalidades são igualmente neutras, como na anterior. Observa-se que nas duas collages apresentadas anteriormente existem diferenças entre as suas representações. A primeira possui um fundo quase infinito, neutro, abstrato; na outra, o fundo – uma fotografia – é finito, tópico, regular.
As fotografias são fundamentais para se fazer collage. Através de figuras técnicas obtidas por essa “máquina de representar” podemos retirar fragmentos da realidade, captar e reproduzir o que o olho vê. Ela, no entanto, modifica as imagens, transforma os corpos em objetos. A Figura 70 é uma fotografia feita no segundo pavimento do MASP, destinado à pinacoteca, na qual Lina posa com “O escolar”, de Van Gogh, no meio da construção da obra. Ela organizou o cenário para essa foto, pensou detalhadamente no local do suporte e em sua própria posição, escolheu a obra e posicionou os operários. Parece ter havido ali algumas intenções na montagem do cenário, sendo um de seus resultados a possibilidade do espaço absorver a pintura, e da pintura seduzir o espaço da fotografia. Nessa figura, aparece um reflexo do céu no vidro do suporte projetado por Lina para os quadros da pinacoteca do museu, causando um efeito bizarro e, ao mesmo tempo curioso. A pintura de Van Gogh colada sobre esse céu, juntamente com seu suporte, aparentam ser um novo recorte colado sobre a fotografia de Lina no vão da pinacoteca. Uma collage acontecendo ali, naturalmente. Como se refere Fuão: “Collage consiste em deixar buracos sobre a superfície da fotografia. Collage é abrir janelas em falsas janelas. Verdadeiramente um ato de iluminação”. Dessa forma, todo o desenho contrasta com o que existe, e toda realidade se contrasta com esse desenho.
Lina foi, possivelmente, influenciada e incentivada por Pietro Maria Bardi a utilizar as collages para expressar e representar suas idéias, pois havia entre eles uma forte conjunção de pensamentos que determinantemente influenciou os projetos e as collages que faziam.
No início de sua vida artística, Pietro Maria Bardi desenvolveu algumas colagens . Em uma delas, a mais polêmica, a Tavoli degli Orrori – Mesa dos Horrores, é reproduzido um exemplo de arquitetura acadêmica, misturando moda, fotografias de monumentos, retratos, caricaturas e textos. Segundo Herta Wescher: “Bardi publica uma gigantesca montagem com um texto em que ele se pronuncia contra a arquitetura culturalista que se opõe a autêntica arquitetura moderna com suas construções romântico-elétricas. [...] Esta collage deve mostrar ao público os errados caminhos da política oficial italiana no campo da construção. Esta montagem, que é reproduzida pelas revistas, desencadeia uma discussão violenta sobre o objetivo e a trajetória da arquitetura”. A fotomontagem ficou famosa por seu caráter revolucionário, futurista e dadaísta.
As collages futuristas, influenciadas pelos papiers-collés de Picasso, utilizavam numerosos materiais da vida cotidiana, como madeira, ferro, vidro, jornais, recortes de revistas, papéis coloridos, etiquetas, bilhetes de trem, etc. Traziam para a superfície do papel novas realidades, novos elementos formais e figurativos com motivos abstratos. Nas collages futuristas, eram visíveis a vitalidade de sua expressão e seu dinamismo formal. Já o dadaísmo foi um grande movimento artístico internacional que se desenvolveu na Alemanha, nos anos 20, como forma de protestar contra a chamada cultura artística, tendo como um de seus maiores expoentes Hannah Höch. Ele era uma artista de pensar político e sentir social, igual a Lina. A união de ambas as qualidades indicou-lhe o caminho artístico. Suas collages se caracterizavam pela mistura de todos os conceitos e estilos, com ligações com o Expressionismo, Surrealismo e Construtivismo; enfim, um antiestilo proclamado de modo provocador. Como diria Götz Adriani: “Todo aquele que liberta a sua tendência mais pessoal é dadaísta”. O Surrealismo tem como uma das características básicas o fato de que cada artista escolhia o seu caminho, conforme suas predileções. Foi um estilo que revolucionou a linguagem, ligado direta ou indiretamente ao inconsciente, uma liberação total da imagem presa a qualquer conceito. O Surrealismo não se ocupou de invenções, mas de descobrimentos.
Enquanto Bardi procurava um caráter revolucionário em suas collages, Lina fazia com que seu estilo revolucionário fosse transmitido através de seus recortes e collages um tanto mais ingênuos. Podemos acrescentar vários elementos sobre a superfície do papel para dar vida a representação arquitetônica. O imaginário criado pela collage instiga o potencial projetivo e representativo da arquitetura.
A utilização deste procedimento em projetos de museus deu-se também no Museu à Beira do Oceano, com uma representação diferenciada das desenvolvidas para o MASP, como podemos observar a seguir.
Nos estudos para o Museu à Beira do Oceano, em São Vicente, observamos a fotografia da maquete feita para esse prédio inserida em um cenário. O conceito de sua arquitetura pode ser lido nas palavras referidas por Lina sobre esse projeto: “As finalidades serão as anunciadas por toda a verdadeira museografia moderna, o ambiente será de condições naturais, paisagísticas, climáticas, econômicas e sociais”. Ela faz estudos de cor para os pilares do museu, recortando-os e colando-os por traz da fotografia uma cartolina vermelha. Aqui, os elementos da composição, a fotografia e o papel procuram mostrar também a originalidade que a aproximação entre duas realidades diferentes pode provocar. Este papel vermelho aparece como uma pintura, com um caráter de substituição de técnicas – o papel substituindo a tinta.
Na collage desenvolvida para a área de exposição do museu, Lina cola fotografia sobre fotografia, para representar as obras expostas no seu interior. Poucas fotos em preto e branco foram detalhadamente escolhidas para compor o espaço. As figuras, imagens e objetos foram dispostos de forma hierárquica e limpa sobre espaços amplos. Uma perspectiva dos corpos no espaço produz, na sua leitura, uma articulação de planos, um achatamento de figuras. Isso faz com que a visão perceba primeiramente as obras de arte, o que, para esse estudo, é o mais importante.
Em outros dois estudos para esse mesmo espaço de exposição, Lina parece não se satisfazer com o resultado apenas do papel fotográfico e pinta sobre o mesmo com tinta guache branca e preta, para simbolizar o céu, as nuvens, o mar e uma pequena ilha. Sobre essas interpretações, Nelson de Paula, em seu estudo “Collage: um testemunho fenomenológico”, dedica significativa atenção à questão da superfície das fotografias impressas e à importância de pintá-las. Em seu livro, ele aborda este procedimento desde o conceito de experiência, as fronteiras do espaço, passando pela questão da intenção até chegar à collage como uma tatuagem. “A pele foi a primeira superfície de inscrição, o primeiro suporte de representação. Quem faz collage não escreve nada, inscreve. (In)screver é escrever em profundidade, escrever dentro. E aí, a collage torna-se igual à tatuagem”. As inscrições de desenhos, pinturas sobre as figuras ou fotos que Lina fazia vêm ao encontro das collages de Nelson de Paula: “A collage é o testemunho, o rastro. Algo arrancado do ente corpóreo que habitamos, o qual não chama ‘mundo’, mas ‘cosmos’. Essa revolução é a revolução simbólica. [...] Colar é um ato voluptuoso. Recortar é um ato de curiosidade. E riscar é um ato operacional, faz parte da mecânica do amor. Tal trabalho está ligado ao conceito de maquilagem. A maquilagem ora (hora) esconde, ora (hora) revela. No fundo, o que ela busca é o êxito poético, o encantamento. Este só ocorre devido à dignidade da significação. Decifrar a maquilagem é decifrar a máscara”.
Observa-se que Lina utiliza a mesma base do papel fotográfico para construir outra collage, substituindo os quadros e esculturas da sala de exposição. Ela possivelmente montou a primeira, fotografou-a e, posteriormente, remontou a outra, obtendo assim uma nova exposição, uma nova collage. Há, na disposição espacial dessas imagens sobre o vazio do espaço, uma aproximação com as obras do pintor De Chirico, sendo que uma das imagens utilizadas por ela é uma obra do artista– localizada abaixo à direita –, cujos objetos também se apresentavam soltos em seus quadros, evidenciando o aspecto metafísico do espaço. O aspecto surrealista e a técnica como forma de representação dessa imagem são percebidos na linha do horizonte ao fundo, que mostra o infinito e resgata uma proximidade inclusive com a obra de Salvador Dali.
Também semelhante ao estudo feito para o Museu à Beira do Oceano é a collage que Mies Van der Rohe fez para o Museu para uma cidade pequena, datada de 1942. Ele articula planos abstratos e esculturas soltas no espaço, depositando uma fotografia da Guernica de Picasso, assim como Lina fez com a obra do De Chirico. São surpreendentemente próximas uma da outra. “Traz o trânsito da collage ao objeto trouvé da fotografia”, numa mesma topologia; elas se coincidem no que se refere à utilização desse tipo de procedimento para representar espaços de arquitetura.
Em outra collage para o Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo, a arquiteta resgata a profundidade do espaço. Segue os mesmos princípios utilizados para as collages do MASP e para o Museu à Beira do Oceano: amplas salas construídas com linhas de perspectiva que mostram grandes profundidades, obras “soltas” pelo espaço que parecem flutuar pelo suporte, e os usuais efeitos de liberdade e transparência dos vidros. Ela representa obras de arte dentro do museu através de imagens que lembram obras de arte. As que estão fora foram desenhadas com caneta e coloridas com aquarela. Essas obras – esculturas permanentes – aparecem desenhadas junto ao Parque do Ibirapuera e do perfil da cidade, ao fundo. Algumas dessas linhas ficaram no grafite; outras foram reforçadas com a caneta BIC, sendo ora traçadas mais leves, ora mais reforçadas.
Sua maneira revolucionária é traduzida aqui quando recria os expositores com base de pedra goiás. Eles foram desenvolvidos para uma exposição temporária com o sistema de “cavaletes”, como Lina informa no suporte. Não seriam mais de vidro, como no MASP, mas painéis de madeira para serem utilizados dos dois lados. A fim de representar as obras fixadas nos painéis, ela cola sobre o desenho diferentes fotografias retiradas de revistas, algumas abstratas, outras não, com a mesma proposta adotada no estudo para o Museu à Beira do Oceano. A imagem da direita, mais escura, contrapõe-se com as manchas de nanquim preto ao fundo, que representam o piso de borracha, fazendo um contraponto para a composição. Há inúmeros textos explicativos sobre os materiais e as cores das paredes, pisos e forro. Aparecem também detalhes da caixilharia dos vidros, tipo de luminárias e iluminação, assim como informações sobre os painéis. Os textos são escritos dentro de “balões”, como numa história em quadrinhos. Percebemos também que esses círculos e elipses são como extensões das bases em pedra dos expositores.
Dessa forma, as representações com este procedimento tornam-se expressivas, não apenas pelo ato de colar, mas de significar o objeto representado e encaixá-lo dentro de um outro contexto. Através dela, se alimenta o processo criativo, o imaginário. Aquela “chispa” produzida pela collage poderia ser considerada como um combustível gerador de idéias. Para Hannah Höch: “A técnica da collage é o paradigma de um princípio de mistura, baseada numa seqüência de decisões. A primeira decisão é o recorte. É a mais radical porque se refere à destruição de um dado conjunto. A segunda decisão daí resultante é a nova ordenação das parcelas”#. Misturar procedimentos e técnicas, decidir opções de projeto, todo esse processo, esse ato de reapresentar idéias, costumava ser bastante claro para Lina Bo Bardi. Cabe salientar que toda imagem construída por ela é uma representação de sua vivência. Com isso, obtinha resultados consideráveis na sua forma de criticar o tradicional. Utilizava e desenvolvia as collages como a expressão da liberdade – elas, por si só, já são a própria liberdade.

12 de abr. de 2009


O cais do Porto do Rio Grande. Collage. fernando Fuão

9 de abr. de 2009

LYA PAES DE BARROS. Collages









Texto de Fernando Freitas Fuão e Michele Finger.26/02/99


Em um encontro do grupo surrealista na casa de Lya Paes de Barros, tivemos a oportunidade de ver uma retrospectiva de seus trabalhos. Os primeiros trabalhos apresentados eram pinturas, de um período em que a artista pintava sementes de amendoins, elevados a uma escala macro, visto desde a ótica de um objet trouvé. O tema principal, as sementes de amendoim, era extremamente ligado ao sensual, às formas arredondadas, envolventes e aconchegantes, lembrando ninhos. O fascínio inicial despertado pelo objeto amendoim: pela semente -até então ninguém suspeitaria que metaforicamente eles cresceriam e liberariam uma explosão de imagens de plantas.
As sementes, se tornaram florestas, selvas e ganharam formas surreais em muitas composições. Os trabalhos desta primeira fase eram um caminho, uma busca, uma procura e uma inquietação em representar as diversas formas, volumes, composições que aquele amendoim pudesse gerar, chegando algumas vezes a abstração da figura.
Lya produziu uma pintura que não deixa de ser uma colagem de plantas, árvores, fazendo uma colagem no seu sentido mais simples de acumulação. Durante algum tempo Lya desenvolveu a pintura em paralelo a suas collagens, sem que uma técnica interferisse substancialmente uma na outra.
Parece que, Lya não se fixou pela collage.
Não se deixou asfixiar pela cola. Compreendeu através de suas investigações e estudos o sentido mais profundo da transformação do significado das coisas e do mundo. E em vez de transformar, transmutou o universo da collage para sua pintura.
Nesta sua última fase suas collages se misturam com suas pinturas com betume, nas quais Lya pinta sobre o suporte de pequenas chapas de eucatex, de dimensões 15 x 30 cm.
O seu trabalho mudou completamente, as pinturas dos amendoins passaram a ser apenas estudos, perto do que agora vemos: trabalhos de extrema delicadeza, minunciosidade, perfeccionismo nas formas, na composição, tudo é muito bem elaborado. Num trabalho de paciência oriental.
Lya grafa também poesias nestas pequenas tavoletas que acompanham as placas do quadro, literalmente dípicos com ar medieval-renascentista próximos a Bosch. São tábuas bordeadas de tinta dourada que dão ares também ao kitsch e ao vulgar. Assim move-se o trabalho das placas, na despretensão do casamento do desejo, do sofisticado, com o vulgar, e o ingênuo.
Nesta dialética ou casamento seu trabalho ganha um outro nível de leitura e vai além, sai do orgânico, adquire ares de paisagens orientais, aproxima-se ao arte psicodélico, e ao abstracionismo, tudo isso somado a presença de pequenas figuras recortadas denunciando ou referenciando a importância e dependência com a collage.
Dentro da lógica e da terminologia do surrealismo seu trabalho transborda, excede, e atinge os limites do maravilhoso. Suas collagens-pinturas, -por que não chamar asssim-, são cenários fantásticos, oníricos, orientais. Sua visão traz a tona o arquétipo da Hyleia, da floresta, da floresta encantada da infância de todos nós. Algumas vezes, essas florestas apresentam-se um pouco dark, mas sempre banhada de uma luminosidade vaporosa. Lya consegue nos transmitir essas sensações tão difíceis de serem representadas e descritas. Uma floresta dourada, enriquecida, sugestiva ao ponto da nossa imaginação sentir-se atraída e mergulhar neste território inóspito. O dourado entra em profuzão na obra enaltecendo todo o trabalho e contribuíndo para atingir o brilho do maravilhoso.
Lya cinziu-se de uma beleza e de uma riqueza impressionante, incorporou a collage na pintura em pequenas doses quase homeopáticas. Essas pequenas figuras recortadas articulam-se com as manchas de betume misturam-se facilmente e proporcionam idéia de homogeneidade e continuidade.
Na obra de Lya tudo se transfigura, transmuta aliás talvez seja essa a expressão mais oportuna para designar seu atual trabalho. Neste aparente abstracionismo que a obra de Lya sugere, cidades acabam também virando florestas. O conjunto habitacional Galaratese de Aldo Rossi, mistura-se a outras figuras de edificios anônimos numa grande collage. Suas cidades irônicamente tem aparência betuminosa, rementendo-se a idéia de cidades poluídas, ou cinzentas.
Em outro trabalho pequenos cavalos são incorporados a uma paisagem surrealista feita de manchas que sugerem montanhas, com um colorido típico de alguns quadros de Bosh e de Brueghel. Talvez nesta obra , o mais curioso seja o efeito de estranhamento de escala que estas pequenas figuras recortadas proporcionam, pois, ao incorporarem-se na obra, podemos pensar que elas são realmente cavalos muito pequenos em meio a uma paisagem normal, ou cavalos normais em meio a uma paisagem anormal. Seus trabalhos são abertos sugestivamente operam muito com a idéia de dupla leitura, entre o abstrato e o figurativo e alguns outros com a idéia de superposição de imagens distintas.
Lya nos mostra chapas em eucatex com escrituras, poemas, anotações de frases soltas que lhe ocorriam enquanto trabalhava, o texto escrito no seu conteúdo é muito rico, mas a maneira plástica como Lya os escreveu, a letra, a maneira de pintar essas placas e a sua composição cria uma desconexão plástica contrastante entre as chapas com poesia e as chapas pinturas. A impressão que temos ao olhá-las lado a lado é que foram feitas por pessoas diferentes, essas plaquetas escritas nos remetem à ex-votos. Mas este contraste entre o trabalho artístico (pintura-collage) e a poesia (texto escrito), deve-se a uma maior intimidade de Lya com a linguagem visual, e uma carência de familiaridade com a maneira de encaixar a escrita a estes trabalhos plásticos.
Parte dessa banalidade é porque, geralmente, as poesias que escreve são reinterações da imagem do quadro, sem muitas vezes nada a acrescentar, algo completamente oposto ao trabalho de Sergio Lima que se utiliza dos títulos do quadro como uma imagem distinta do quadro, para provocar a colisão de imagens.
Em sua obra “Quando o céu está sonhando no tempo em que estás fumando...”, pequenos anjos são colados numa vaporosidade de tons dourados, amarelos, cinzas e pretos, tudo isso assinalado por um retângulo que enquadra o vaporoso, logo abaixo um outro retângulo, de menor altura enquadra uma paisagem bastante terrena representada mediante manchas e com um grafismo que sugere cataclismas, ruínas, arquiteturas sobmetidas a destruição, tal qual as pinturas de arquiteturas fantásticas de Desiderio Monsu, ou do quadro “Cidades em chamas” de Bosh. Em seu trabalho: “E tudo que é pesado cai na terra....” “Passei meus dedos pelo muro da minha pele e com dez olhos enxerguei: a escritura que escrevestes, as mentiras que pregastes, os pedidos que fizestes”.
Manchas sugerem escritas, um retângulo de cor dourada e um círculo funcionam como uma lupa que clareia, ilumina, amplia as manchas escuras, revelando formas que sugerem nuvens, figuras humanas, e principalmente letras, pictogramas. A escrita das nuvens, a escritura da terra, e a das cidades.
Em seus trabalhos anteriores onde não aparecia ainda a presença das tavoletas com poesias, a influência oriental é marcante. Lya declarou certa vez, em uma conversa, que quando começou a pintar este tipo de coisa não tinha conhecimento das conhecidas paisagens orientais, e acabou recriando paisagens fantásticas.
Assim é o universo maravilhoso de Lya Paes de Barros.
Dentro da trajetória de Lya pode-se observar a mudança do modo como se utiliza das collages. Lya começou a trabalhar com a collage dentro da metodologia ou melhor dizendo, da receita (Nota) proposta por Sérgio Lima, que opera basicamente com conceitos e significados de alto grau. A forma com que Lya vem traballhando, da forma mais “simples”, de certa maneira que os limites entre a colagem e a collage são muito tênues, e que a descoberta do significado da experiência direta com a obra, independente do significado. “A experiência da criança não articula significado com prazer...”
Ao analisarmos algumas de suas antigas collages poderemos observar algumas das características utilizadas por Lya Paes de Barros.
Na collage-objeto, Fascinação de 1987 Lya estabelece relações entre duas imagens e alguns pequenos objets-trouvés, a direita vemos uma figura feminina meio encoberta por uma rede muito fina de linhas pretas, a esquerda a imagem de uma pirâmide do Egito que no seu cume tem a figura do sol radiante, ainda no lado esquerdo da composição vemos um bastidor circular que tem uma referência direta com a forma do sol, e que também por ser um bastidor de costura, se relaciona com as linhas que saem dele e criam um emaranhado em direção a figura feminina que esta a direita da collage. Ainda dentro deste bastitor Lya recorta um pequeno pedaço de tecido na cor azul e o costura com diversos pontos e entrelaçamentos, deixando este tecido totalmente preso e costurado no bastidor. Podemos ainda perceber alguns pequenos elementos em metal que apenas pontuam o espaço do trabalho.
Analisando uma segunda collage com o título “Enigma” de 1987 podemos observar que assim como na collage 1, Lya utiliza novamente a imagem de uma pirâmide do Egito e ainda nesta collage aparece um outro elemento neste caso a imagem da esfinge. Mas este é apenas um dos elementos desta collage, toda a composição foi criada sobre um fundo marrom, lembrando a cor da terra, da aridez do deserto. A direita vemos a figura da pirâmide e da esfinge, sobreposta a ela vemos uma imagem da silhueta de uma pessoa na areia, a sua sombra, e uma segunda imagem um pouco mais a direita também aparece outra silhueta: do braço e da mão de uma pessoa. A esquerda da composição estão coladas outras duas imagens, na parte superior imagens de engrenagens de relógios, e um pequeno relógio, logo abaixo vemos a silhueta de um beijo e novamente sobreposta a esta imagem Lya cola uma outra fotografia que aparece a sombra de uma pessoa sentada em uma cadeira. Dentro deste emaranhado de imagens fica explícito nesta collage a relação criada entre as sombras e as silhuetas das figuras e o próprio título da collage já se refere a este “Enigma” que é criado em torno das sombras, a imagem de uma sombra sempre é negra e nos revela o contorno de algo, deixando sempre em dúvida muitos outros elementos, como as cores reais, os detahes escondidos e encobertos pela sombra, etc. As sombras são enigmáticas.
Em uma terceira collage de título “O Ponto Mágico”, 1987, sobre um fundo preto Lya cria uma composição sensual. Na parte inferior da collage vemos ao fundo uma fotografia preto e branco de uma paisagem com montanhas, e aparecem algumas nuvens de neblina que encobrem o cume de algumas destas montanhas, sobre esta foto de paisagem vemos uma outra imagem de uma casal nu envolvidos em um abraço, os dois estão com seus olhos fechados num deleite, como num sonho de prazer. Lya sobrepos a esta imagem fotográfica um papel transparente, e copia a imagem do casal utilizando uma caneta esferográfica de traço fino, com esta imagem transferida para o papel de seda Lya opta por deslocar para cima e assim ter a imagem duplicada dos amantes, que parecem ter se transformado em um véu. Logo acima deles vemos imagens de nuvens e ainda colados sobre este céu, Lya usa pedaços de algodão que remetem as imagens das nuvens e compõe um universo de sonho e fluidez, que resaltam ainda mais a leveza da composição. Temos nesta collage uma perfeita relação e uma harmonia muito rica entre as imagens, os elementos e suas características, neste caso o elemento algodão veio reforçar ainda mais a idéia de sonho e como não, poderíamos de deixar de sitar aquela velha expresão dos apaixonados “Me sinto nas nuvens com você”, fica explícita nesta composição tão criativa realizada por Lya Paes de Barros.

8 de abr. de 2009


A TORRE SÃO PAULO,
uma idéia de collage no projeto do arq. Gaetano Pesce
Fernando Freitas Fuão

Alinhar ao centro
A Torre São Paulo , um projeto idéia do arquiteto italiano Gaetano Pesce, constitui-se um verdadeiro projeto collage,com uma forte relação com o jogo surrealista do Cadavre Esquis. Poderia-se dizer que a Torre São Paulo é um cadavre esquis arquitetônico, realizado num sentido vertical. Um cadavre esquis ou "cadaver esquisito"ou ainda "cadaver delicioso" é um estranho jogo surrealista, inicialmente praticado em 1925, no qual se tomava uma folha de papel dobrada várias vezes, em que os participantes do jogo iam escrevendo ou desenhando a primeira coisa que lhes vinha a mente a cada vez, e sem ver o que haviam desenhado seus companheiros. Para tal Gaetano Pesce convidou uma série de arquitetos brasileiros para trabalharem no projeto.Segundo a concepção de Pesce, o edifício é composto por três torres: a Torre Jardim, a Torre Serviço e a Torre Apartamento.A Torre Jardim tem projeto de paisagismo de Burle Marx; na Torre Serviço tem elevador, escadas e hall de serviço.
A Torre Apartamento permite que o comprador desenvolva, através de um dos onze arquitetos, um apartamento em dois níveis com até 406 m2 totais de área privativa. Onde a criatividade será largamente utilizada para atender às necessidades pessoais de cada um dos compradores, seja determinando o número de dormitórios e varandas, seja escolhendo a localização das salas e banheiros, ou mesmo decidindo como será a fachada. A originalidade de sua concepção atraiu a atenção de arquitetos mundialmente reconhecidos, tais como, Frank Gehry, Emílio Ambasz, Hans Hollein, Álvaro Siza, Jean Nouvel e muitos outros. E tem também despertado discussões acadêmicas em todos os cantos do mundo.Em verdade a Torre São Paulo é uma rua vertical de casa. O morador da Torre São Paulo não compra um apartamento com sua planta padrão e seu número de comodos estabelecidos. Aqui ele compra um terreno e uma coisa chamada liberdade. A liberdade de projetar seu apartamento na Torre São Paulo é quase que absoluta. A idéia de projetar um edifício, armadura, uma estrutura vazia, onde cada morador tem a possibilidade de construir seu apartamento da maneira que mais lhe agradar, não é nova. Para tal poderíamos nos remeter ao projeto para o edifício na cidade do grupo Site, a Okus House de frei Otto. Na Torre São Paulo, existe uma estrutura, também que suporta os apartamentos, só que neste caso a estrutura propriamente vertical, e as formas, as fachadas de cada apartamento adquirem uma grande autonomia, transformando-se praticamente em residencias que são empilhadas uma em cima das outras sem o menor laço de continuidade formais ou estruturais umas com as outras. Pode-se dizer que no projeto de Le Corbusier e do grupo Site, a estrutura é predominante e esteriotipada sobre forma de caixas, no projeto de Pesce a estrutura é interiorizada, implícita e velada em detrimento da variada forma das partes que compõe o todo. Nos projetos anteriores a variedade das partes esta submetida a unicidade do todo estrutural, enquanto na Torre a variedade das partes fazem o todo.Tal como no Cadavre Exquis cada participante desconhecia o projeto do outro. Este artifício propiciou, de certa forma a tão desejada descontinuidade entre um projeto e outro, entre um apartamento e outro. Algo praticamente idêntico a uma collage onde cada figura que se junta a outra possui uma identidade toda própria, deixando transparecer, em muitos casos, a marca do recorte. Aqui compreendida como um intervalo, ou uma ausência de continuidade seja ela formal, por cores ou simplesmente estrutural.Pode-se dizer a Torre São Paulo se utiliza de dois recursos da collage, um que não é da collage: O Cadavre Esquis, mas sim, no desenho, mas que a collage incorpora essa idéia de continuidade baseada em elementos descontínuos. E outra a acumulação de figuras, acumulação de fragmentos, característica de algumas collagens dadaístas, e de alguns mosaicos. A Torre São Paulo por não deixar transparecer sua estrutura, possibilitou que cada apartamento fosse um duplex, permitindo assim em termos de leitura um encobrimento, ou um disfarçe da altura total do edifício quando lido mediante o número de pavimentos. Alguns apartamentos que são duplex, apresentam aberturas bem marcadas para cada pavimento, entretanto outros, possuem aberturas que compreendem os dois pavimentos,assemelhando-se a residencias. Isso faz com que, se leia o edificio composto não só por fragmentos distintos, mas também fragmentos de escalas diferentes ou seja: alguns apartamentos parecem casas miniaturas em relação aos outros.A Torre São Paulo apresenta ainda outra fantástica característica que acentua seu caráter de collage aleatória e liberdade de estrutura. Por não possuir bordas delimitadas, e uma estrutura projetada para suportar balanços, foi com que cada fragmento não obedecesse a um ordenamento estrutural de alinhamento, propiciando que cada figura, cada apartamento, ora sobressaia-se ao apartamento debaixo, ora apresentando reentrâncias, jardins, sacadas, etc Nenhuma lógica liga um apartamento ao outro, nem as aberturas, cada apartamento possui aberturas diferentes dos demais, linguagens formais, assinalando assim as características dos projetos de cada arquiteto. Mas existe de certa forma uma continuidade do texto na Torre, e essa continuidade é dada pela área de cada apartamento projetado, e um certo determinismo ocasionado pela própria estrutura, que exigia um certo tratamento ortogonal nas esquinas, ainda que não alinhadas verticalmente. A Torre São Paulo nunca foi construída.

7 de abr. de 2009




LAILA AIACH. Collages
Fernando Freitas Fuão. 26/ 02/ 99

ABISMOS [ 1992 ]
Distintamente das composições com figuras isoladas que Sergio Lima utiliza, Laila Aiach prefere empregar as estratégias de superposição e penetrações de papéis, permitindo assim diversas leituras em seu aspecto compositivo e sintagmático. Sem entretanto, menosprezar os significados paradigmáticos. Em abismos, um dos seus mais belos trabalhos de 1992, Laila vale-se intensamente destas estratégias compositivas. Pode-se observar vários elementos como cartolinas, fotografias e transparências articuladas em meio a um jogo de sobreposições e penetrações. Uma composição muito semelhante àquelas que o hasard costuma deixar quando guardamos as figuras nas pastas e voltamos a abrir no dia seguinte. Laila parece querer perpetuar esse momento do acaso. Fixando as imagens tal qual o produto do inesperado. Poderíamos tomar quase que como certo, não fosse os vestígios de disposição premeditados seguindo, um ordenamento das figuras segundo o eixo horizontal ou vertical.
Entretanto, o aspecto mais importante no trabalho de Laila seguramente não é a composição e sim o profundo significado que brota da articulação das figuras e dos recursos de cartões e cartolinas. Quando ela articula as figuras e cartolinas, faz com que as cores emitam significados. Um determinado significado para cada cor em relação ao conjunto.
Ainda dentro do tema da mulher, em Abismos Laila mostra a mulher como abismo. A nudez do corpo exposto, do contorno das formas. O abismo da lógica feminina. Da razão depilada.
O abismo das pernas abertas. O abismo das nádegas expostas.
Em Abismos um fantástico jogo se estabelece entre o conceito de peles e abismos. A relação de pele é ressaltada não por analogias, mas sim por um processo enfático e ampliado de cor e textura. Articulando as imagens da mulher com pele bronzeada, e um grande recorte de couro artificial quase da mesma cor da pele, com toda sua porosidade. A porosidade dos seios. A idéia de pele, membrana, superfície que cobre, está dissimulada por toda a superfície da collage. E, é certamente quando se vale de um papel semi-transparente, tipo papel cebola, que ela dá o sentido da pele como membrana, tecido permeável, hímen, tecido que conecta e une diversas imagens, os diversos papéis. A pele como velo unindo um lado a outro do quadro. O hímen fechando o verdadeiro abismo. A transparência definitivamente vem da mulher à direita. Para reafirmar a imagem de que o importante nesta situação é o corpo e não o rosto.
Finalmente os conceitos de pele são aplicados também à roupa jeans, ao pequeno biquini, ao cabelo, aos papéis, e evidentemente à fotografia como pele.
Quem sabe, numa segunda leitura encontraríamos um terceiro abismo se considerássemos o céu e o mar como os grandes abismos. Suas grandes superfícies como revestimento, como peles da terra, roupas jeans. Indigo blue. Quiçá seja por isso que a foto central do trabalho não seja colorida, para não evidenciar demais a idéia de azul como pele, como abismo. A transparência do papel deixa entrever as poucas gotas de cola, que Laila utilizou para fixar os papéis. A veladura percorre toda a composição na horizontal, superpondo-se, encobrindo parcialmente os papéis, penetrando-os e saindo adiante quase como uma costura. A própria idéia do papel como pele, como vestimenta, é dada também pela própria continuidade sugerida pela justaposição entre o papel e a imagem da roupa na foto principal.
As analogias no trabalho de Laila não cessam, em A Lua debulhando pérolas (1992), o mais interessante é que não emprega o jogo de analogias bastante difíceis de se ligarem, mas com o auxílio do título, das cores das cartolinas e fotografias rasgadas permite que façamos uma agradável ginástica para tentar estabelecer as correlações sugeridas. Não existem dessemelhanças aparentes. Existe sim, novamente um encadeamento de significados apoiado por cores, formas e textos.
Entre o divã e a Diva, se encontra “A Lua Debulhando Pérolas”.
Um fantástico jogo etéreo tecido através de analogias e conceitos formais sugerido pelas próprias figuras e cores da collage. Sobre um fundo azul nadam basicamente três recortes de fotografias. Nele são trabalhados conceitos, que de uma forma ou de outra acabam por juntar-se. Uma primeira analogia da lua é dada pelo divã e o recorte feito a mão em forma de meia lua. Daí surge A Diva recostada sobre a lua.
A idéia de lua liga-se à fotografia de uma pérola que por sua vez apoia-se também na fotografia, no divã. A imagem do divã como concha, como lua. A Diva como afrodite, que abriga a pérola, a mulher.
Finalmente um papel transparente e amarrotado, a manta sobre o corpo da mulher, misturando-se com o próprio tecido que a cobre. Surrealista na collage é o pé da Diva. O pé do divã que está deslocado de sua posição normal. Um outro pé.
Em um outro trabalho O TRATADO DO LIVRE ARBITRIO 1993. Outro jogo de imagens e relações visuais. A direita dessa collage vemos uma porta de madeira, uma porta de prisão com suas aberturas e suas grades, dela saem mãos agonizantes como se estivessem pedindo ajuda. A esquerda vemos uma folha, uma lâmina de madeira com seus recortes, suas incisões e logo abaixo segue uma sequencia de figuras femininas, escuras que fazem relação com o escuro das grades da porta. Esta seqüência de figuras formam a palavra KATL. As figuras também estão recortadas tal como a folha de madeira e a porta da prisão. Ainda no canto inferior direito da collage vemos uma chave, que faz relação com as grades da prisão. Esta chave serve para abri-la e também é a chave do enigma dessa collage. Por último podemos estabelecer uma relação entre a fotografia como encarceramento de imagens e o recorte destas imagens como a chave para a liberdade.
Vemos diferentes tipos de relações estabelecidas por Laila na collage Profanação (1993). A primeira delas entre o rosto da figura e a cor do papel cartolina que têm a mesma cor, a segunda relação entre a textura do cabelo e a textura da pedra, e seguem outras: o manto que cobre e rodeia a cabeça e a moldura, paspartout que rodeia a pedra, o bracelete em volta da mão e o marco branco como bracelete, o papel branco artesanal, como o manto branco, o cano metálico como referência ao braço e por último as manchas da pele e as manchas na pedra. As collages de Laila são riquíssimas de relações e interpretações por este motivo são grandes as possibilidades e leituras que podemos estabelecer em suas collages.
Laila utiliza mais sobreposição e penetração do que justaposição. Trabalha como suporte grandes superfícies de cartolina, papéis coloridos que ampliam a leitura da fotografia. Na maioria, não são paspartout ajudam a compreensão para estabelecer analogias. Utiliza elementos trouve geralmente isolados, como o caso da chave, na collage “O Tratado do Livre Arbítrio” (1993). Outra característica freqüente em algumas collages de Laila são os recortes feitos a mão. Laila em suas collages demostra ter uma facilidade de criar relações entre as imagens e os objetos trouve, em alguns casos parecendo sempre que estas relações se dão de maneira natural e como uma espontaneidade particular.
Dentre os trabalhos de Laila este é “maravilhoso”, principalmente pelo domínio das cores, suaves, fortes, às vezes as collages assumem ar vaporoso como por exemplo em “A Lua Debrulhando Pérolas(1992), ou ares de cartaz político como em “Profanação”(1993). São collages sempre vigorosas, fortes, quer por seu conteúdo, significado ou pelas cores.
O trabalho de Laila se diferencia dos trabalhos de Heloísa Pessoa, Ivanir de Oliveira e Lya Paes de Barros à medida que nos detemos e percebemos sua maneira de trabalhar as relações criadas e estabelecidas entre as imagens escolhidas, a preocupação com o conteúdo simbólico das imagens. Na maioria de suas collagens são imagens fortes e esta preocupação também se estende para os títulos da collages. Poderíamos chamar suas collages de poemas visuais, tal é a relação e dialogo estabelecido entre as imagens e objetos, formando num todo collages de composição completa, que unem todos os elementos essências para a construção de uma collage.
RECEITA DE COLLAGE
Texto de Sergio Lima

Como contribuição ao atual levantamento efetuado sob os cuidados de Gabriel Borba e sua Cooperativa, tomamos a iniciativa de encaminhar uma receita de arte, dentro da técnica de “collage” (colagem como linguagem), abrangendo critérios, métodos, materiais e processamentos como segue:
“Os critérios que adoto na composição, no resultado de cada quadro decorrem do próprio processo que estabelece o meu debruçar-se sobre essas imagens ou fragmentos, que estabelece o meu trabalho.
Diria, a grosso modo, que existem três etapas distintas desse trabalhar.
A primeira etapa seria no campo das predileções, a segunda seria no campo das permutações, e a terceira seria no campo da execução pictórica ou técnica do quadro. Essas etapas estão sempre interligadas, e por vezes acontece de se superporem, com o detalhe que só nas duas primeiras existem o acaso e a necessidade (vide “hasard-objetif”); enquanto que na terceira, a da execução plástica, verifica-se todo um rigor, o qual deriva de uma posição de artista plástico.
Vou procurar rapidamente descrevê-las por alto.
Primeira etapa: olho revistas, publicações e jornais, ou freqüento locais onde olho objetos, como magazines, lojas e ferro-velhos, onde encontro ao acaso, imagens que me interessam, me seduzem, pelos motivos os mais variados, ou por uma predileção pessoal minha.
Guardo esse material, por um bom tempo (num mínimo de 4 a 5 meses), para que percam o referencial imediato e deixem de ter o impacto de novidade para mim. Depois, volto a esse material e os separo. Isto feito tudo separado e escolhido, jogo fora o que não vai ser utilizado naquele momento. Fico então com uma quantidade de objetos e recortes (ou imagens) a nível de um primeiro residual, que por sua vez, é guardado por outro tempo e período.
Meses depois, volto novamente a esse material e os seleciono uma segunda vez, através de sketchs ou desenhos rápidos anotando também elementos de cor, de nome, de títulos ou mesmo alusões de linguagem que “as figuras” me suscitem ou provoquem, quase que automaticamente e de forma bem livre.
Passo então a ter dois referenciais para cada uma das imagens selecionadas: um a nível de desenho (visual) e outro a nível de texto (poético), como fruto dos rascunho e anotações.
Segunda etapa: volto, a partir dos desenhos e dos textos, ao material inicial, e passo a estabelecer as analogias, aproximações, relações, etc. Em virtude da referência visual poética (de desenhos e textos) que me conduziu de volta ao material inicial, não ser a mesma que estabeleceu a sua escolha e seleção, acontece uma nova escolha: daquele material inicial surgem novas relações e um nível mais complexo, onde começam a se processar permutações: trocas intercâmbios, substituições, superposições, etc. Enfim, entra em circuito um caráter lúdico, ligado a uma ocupação de construção sensível.
A partir deste momento, os fragmentos (recortes, páginas, objetos, etc), isto é, as imagens, já existem em si e estão deslocadas fatalmente de seus contextos iniciais ou usos primários e deixam de se reportar, pois aos veículos e mídias que as usaram. O que vale dizer é que estes fragmentos deixaram de ser úteis e passaram a ser belos em si, a ter valores próprios.
E é nesse nível, ao nível desses valores, que então passo a operar e se dão as permutações, revelando, por assim dizer, os sentidos e significações até então ocultos ou indivisíveis (enquanto estas imagens estavam diluídas nos seus veículos corriqueiros). Então, como primeiro estágio dessa etapa, passo a ter conjuntos de significados cruzados, num recorte único, ou em dois, ou mesmo em mais fragmentos: e, como segundo estágio dessa etapa, passo a relacionar esse conjuntos já separados em anos anteriores (trabalho com colagem desde 1956), ou os que surgem do primeiro manuseio de uma nova primeira etapa (por coincidência de um período de tempo análogo que possui esta segunda etapa, ela acaba por coincidir com uma nova primeira etapa, e assim sucessivamente).
Notemos, que nessa segunda etapa, onde ainda predomina o “hasard-objetif” começam a surgir direções/sentidos que são dados pelo próprio material e por seus valores intrínsecos a nível de imagem. E como resultado, então passo as ter resíduos direcionados (ou, um conjunto de resíduos), de materiais diversos, elaborados e carregados emocionalmente, passando cada um a adquirir também um título que lhe dá um sentido - título esse que será mantido ou não no trabalho final.
Terceira etapa: cada resíduo é transporto para uma chassis (geralmente de duraplex com papel fabricano colado) ou espaço plástico, onde tem início um delicado trabalho de feitura (ou pintura), a partir de aplicações nessa superfície dos elementos necessários para a sua constituição, numa harmonia plástica, num quadro ou obra completa. É nessa etapa, por vezes demorada, que surgem os específicos recursos tradicionais de solução para a questão de composição e espaço através do valor cromático das formas, da observância de luz correta (nos diversos fragmentos), do desenho enfim (com recursos de pastel, lápis cera, lápis de cor, carvão, giz, aquarela, etc), e também através da própria colagem do resíduo impresso ou “do recorte” no suporte, com ou sem interferência de outros materiais (conforme o caso), e do seu acabamento num todo, como pintura. E como resultado temos então um quadro.
Observação: Quanto `a moldura, diria o seguinte: em virtude, justamente, do pouco hábito em olhar “processos de conhecimento” através de imagens e do enorme hábito de se julgar que tudo que está dentro de uma moldura é um quadro, passei a estender o que chamei de terceira etapa, ou seja (a feitura técnica, ao próprio acabamento do quadro na qualidade de objeto: isto é, ao seu todo emoldurado. Daí, no caso de determinados trabalhos meus, as molduras participarem diretamente da específica concepção plástica do mesmo, além de configurar com novo desenho o espaço do plano do chassis. O que, contudo não, transforma isso numa regra ou exigência.
Bom, nessas horas é que a gente se lembra da frase de Max Ernst: “Não é a cola que faz collage’.
Folha de São Paulo, 26 de março de 1978

6 de abr. de 2009




O CORPO FIGURA.
A collage em João Manta
Para uma compreensão do corpo e sua representação na collage

Fernando Fuão

Triste visibilidade aquela que inaugura o reencontro do corpo consigo mesmo. Todo encontro é sempre um redescobrir ou um recortar o próprio corpo. O jogo de encontros de figuras na collage reflete toda a problemática do corpo com sua representação. Ver é suportar a visão, a visão do olho cortado. A collage "encontro" de João Manta retrata a especificidade do encontro das figuras na collage: ali está o corpo-figura frente a seu recorte, totalmente descolado, refletindo uma visão bastante distinta daquela que Narciso se encontrou pela primeira vez no charco romano. E o charco pode ser considerado o retrato clichê. O recorte não assegura mais a projeção do representante no representado sobre as leis da mimeses fotográfica. A figura especular, a projeção no espelho semelhante à fotografia, foi transferida a outro universo (colocada em suspensão, destinada à errância) pelo artifício do recorte. Dela nada se sabe, até no lixo pode estar, tudo o que sobrou dela foi seu tênue contorno, sua silhueta, marcas de um corpo que partiu. Igualzinho ao mito da origem da pintura. Aqui a figura vale por seu contorno. A collage permite ao corpo ver o que se esconde no interior de seu corpo, quando está desapropriado de sua falsa pele, se sua representação fotográfica, de seu narcisismo. Como disse Sérgio Lima: "O campo da collage é sensível à expressão dinâmica, ao que chamamos visão ativa, uma visão que não existe para o espelho, ou para uma simples cópia. É uma espécie de investigação. Investigar o corpo do outro, sua representação, o nu, como se quisesse ver o que tem dentro, sua essência, seu significado." # O corpo recorte é todo uma alegoria, uma alegria. O recorte faz a abertura, descobre o velo, e fixa o novo corpo surgido por detrás do virtualismo e da espectralidade da representação, do espelho das memórias. Põe em evidência o uso do corpo, já que um corpo sem uso é incorporeidade (isto é função dos espelhos), do mundo virtual, vídeos, e de todas as demais representações que visam a autentificação e controle sobre os corpos: registro institucional, controle do poder, saber. Fora do uso não há corpo. O recorte descobre a falsa representação dos espelhos. Recortar é seduzir. O recorte talha o espelho, como se uma nuvem cortasse a lua para que a fenda enturve a razão e deixe aflorar a luz. Desencontro da sedução com o corpo. Etimologicamente a palavra seduco confirma a concepção da sedução como anulação e da palavra sedduco como separar, tirar, dividir. A partícula sed indica separação, isolamento, distanciamento. Nudez da representação. Ao retirar a máscara do reflexo e anexar um novo universo, João Manta proporciona uma nova dimensão à narrativa inicial, ensimesmada. Entretanto, se observarmos melhor, nem toda figura total foi recortada, apenas o reflexo do corpo exposto, deixando a lâmina, o casaco exposto. O poético, o retórico vem dessas partes que garantem a trova de visibilidade, dessa parte da mimese, da representação institucionalizada, da moldura, da situação de imagem sempre referência, de se ver frente ao espelho todos os dias. Dessa troca de visibilidade entre o representante, o representado e observador. O poético opera com coisas que são e não são ao mesmo tempo. O jogo de imagens entre verossímil e inverossímil encerra todos os segredos da collage. O encontro reside nesse entrever a verdade e a mentira, num desvelamento do corpo, na fenda do espelho, na fenda do desejo. O casaco recobre, como uma verdadeira pele o vazio interior do corpo do ser. A incorporeidade de um corpo que é pura virtualidade. Assim através do recorte, do que é deixado de fora, é que se encobre o vazio do ser, seu contorno, esse trago invisível. É a marca que mostra o descolamento da representação de seu próprio corpo. Finalmente Manta consegue um efeito de pura reciprocidade que se manifesta no espelho que vê e é visto. Dois momentos que se acertam continuamente quando efetivamente se dá o encontro. Pois o encontro do eu, nunca é com o eu, e sim com o outro. A figura é sempre uma metáfora do corpo. O corpo é metáfora da luz. A cada luz, poeticamente o homem habita e se encontra em seu corpo e não em sua representação.